“O feminismo não é suficiente. O antirracismo não é suficiente. E o socialismo não é suficiente”, foram algumas das declarações da filósofa comunista Zillah Einsenstein, na abertura de um curso de teoria crítica na antiga Iugoslávia, semana passada por zoom.
A provocação surge de uma proposta em que essas categorias não devem ser vistas como excludentes e possivelmente conectadas através da conjunção “e”.
Para a pensadora, não deveríamos ser socialistas “e” feministas “e” abolicionistas, já que a conjunção aditiva coordena produtos de diferentes raízes, dando a falsa impressão de que são questões distintas que se encontram em determinados momentos, unindo diferentes lutas.

Ao invés disso, o abolicionismo, o feminismo e o socialismo não podem se imaginar além da relação dialética entre em si, porque uma vez distanciados, correm o risco de se contradizer, ou mesmo alimentar as dinâmicas de opressão. Assim como o patriarcado, o capitalismo e racismo operam de forma conjunta. Logo, a luta popular só faria sentido através da imaginação de uma resposta articulada.
Esse marco é fundamental para que possamos rastrear a mobilidade da figura do patriarca, já que esse potencial móvel permite que operações misóginas sejam executadas por mulheres e o racismo seja reproduzido e avançado mesmo por pessoas negras. Tomemos o exemplo de Damares Alves, advogada que ocupa o cargo mais alto do ministério dos direitos humanos, da família e da mulher.[1]
_______________
[1] Decidi deixar o nome do ministério em letras minúsculas como forma de confronto ao poder institucional.
No dia 6 de maio de 2021, a polícia invade a favela do Jacarezinho, à revelia da ordem do Supremo Tribunal Federal, e executando pelo menos 28 pessoas. O discurso é o mesmo, guerra ao tráfico. Sem entrar nos detalhes na falta de ação de inteligência da polícia civil, já que os morros não produzem fuzis ou drogas, precisamos ponderar sobre a utilidade da política de segurança. Na verdade, não há política de segurança e sim de execução aos moradores da periferia.
Na recente chacina do Jacarezinho, a desculpa da vez foi o aliciamento de menores feito pelos traficantes da região. Com a finalidade de estancar o aliciamento, se invade a favela pela manhã e chega a matar um jovem no quarto de uma menina de oito anos, com toda a família dentro da casa.
A justificativa da luta contra o aliciamento de menores, curiosamente também sacrificou algumas daquelas crianças. Segundo o pesquisador Lindomar Darós, é crucial que reforcemos em nomear aqueles com menos de 18 anos como crianças. Para o especialista, ao insistir no substantivo “criança”, atraímos a responsabilidade para o Estado, ao invés de impor um agenciamento negativo contra a infância.[2] Isto é dizer, recusamos que a culpa da ausência do Estado recaia sobre a criança.
No exemplo do Jacarezinho, temos uma criança traumatizada por toda a vida pela tortura policial, além de outras crianças friamente fuziladas. Os jovens, majoritariamente negros, tinham mães negras; conexão que nos impede de separar o que é luta feminista, guerra de classes, ou abolicionismo.
As dores têm pontos de origem muito similares para elaborarmos uma cisão cirúrgica, motivo que a conexão dos ideais se prova muito mais produtiva em nossa batalha diária contra as atrocidades normalizadas no cotidiano brasileiro.
[2] Darós, Lindomar Expedito. Adoção judicial de filhos e/ou filhas em conjugalidades LGBTTIQ. Editora Appris, 2021.
No mesmo mês da chacina do Jacarezinho, Damares Alves celebra efusivamente em seu Twitter um projeto de expansão das “salas de escuta” para crianças nas delegacias do Brasil.
Já sabemos que o ministério dos direitos humanos tende a ser omisso frente ao terror causado pela Polícia, como no caso da favela da Zona Norte carioca, a despeito da decisão do STF. O que surpreende na celebração de Damares com relação as “salas de escuta” é que, novamente, se mascara a proteção das crianças como forma de perpetração de uma violência sistêmica. Especialmente, se nos atentarmos às estruturas de racismo e opressão contra os grupos economicamente vilipendiados. A decisão por expansão das “salas de escuta” é falaciosa.
O fato de termos salas decoradas com elefantes coloridos em uma delegacia não humaniza um espaço em que crianças não deveriam transitar. Depoimentos de crianças não deveriam ser tomados nem com o apoio de profissionais da psicologia e do serviço social nas Varas de Infância, Juventude e Idoso e/ou Varas Criminais, já que entendemos que crianças não deveriam ser submetidas a criação de provas, acessando repetidamente a raiz de seu trauma.
Um horizonte progressista imaginaria um contato técnico do serviço social e psicologia com as crianças, sem que esses campos do saber fossem subjugados ao campo do direito. Uma avaliação profissional desses campos do saber deveria ser um contato suficiente pós-eventos traumáticos.[3]
_____________
[3] Schaffer, Caio; Piedade, Erika; Darós, Lindomar Expedito. “Escuta & Inquirição – o limiar das práticas. Psicologia, serviço social e direito: Quem sabe o saber do outro?” In: Violência e Gênero – Temas políticos atuais. Orgs. André Vicolitti e Cristiane Brandão Augusto, 2019.

Se Damares Alves estivesse verdadeiramente interessada no bem-estar das crianças, ela lamentaria a salas de inquisição para baixinhos. Se o ministério dos direitos humanos fosse um órgão que criasse políticas públicas sérias, Damares comemoraria se crianças não fossem mais submetidas a cenas do extermínio de ver alguém executado em seus próprios quartos.
Nossas crianças não deveriam ter que aprender técnicas de sobrevivência para quando a Polícia chega atirando no horário da escola e não teriam de ver massa encefálica decorando o percurso para suas casas. Infelizmente, o desejo de ladrilhar as ruas com pedrinhas de brilhantes, parece uma canção infantil impossível para os rebentos da periferia. Trocando em miúdos, o fato de uma mulher, como a nossa “estimada” ministra, ocupar um alto cargo de poder não garante que as ações patriarcais serão combatidas, já que uma mulher como Damares no exercício de poder não necessariamente combateria o patriarcado.
Além do mais, mesmo o feminismo, se despegado de ideais antirracistas e socialistas se prova ineficaz. Se concordamos que o patriarcado é um trono que pode ser ocupado por diferentes pessoas, os discursos de um feminismo industrial que almeja mulheres bilionárias fracassa por não entender que essa acumulação excessiva de capital é criminosa. Em outras palavras, a negritude ou o feminismo industrial não operam uma missão salvadora no que é irrecuperável, isto é, no capitalismo.
Se por um lado, o ministério dos direitos humanos luta ativamente contra os direitos reprodutivos das brasileiras. Por outro lado, a constante defesa de Damares Alves ao projeto #EscolaSemPartido dificulta que a educação sexual seja disponibilizada para adolescentes, em sua maioria pobres e negras.
Além disso, a obsessão pró-vida tem duração restrita ao parto, porque pouco se importa com a adolescente-progenitora ou com a criança recém-nascida, conforme discutido pela teórica Marie-Claire Vallois. Curiosamente, a obsessão pró-vida tem data de expiração.
Ou melhor, o mesmo movimento pró-vida também apoia a redução da maioridade penal e discursa sobre a relevância de leis que garantam “o bandido bom como bandido morto”, mesmo que esse suposto bandido também seja uma criança com menos de 18 anos.
A luta pela igualdade de gênero, assim como ver mulheres e negros no poder devem ser temas centrais e constantes em qualquer agenda política que se entenda como progressista. No entanto, não podemos acreditar que o simples fato de que as lideranças de Damares Alves (ministério dos direitos humanos, da família e da mulher), Cláudia López (prefeita de Bogotá) ou Sergio Camargo (presidente da Fundação Palmares) gerem, diretamente, uma ameaça ao machismo ou racismo.
Na verdade, há potenciais de reforço de uma violência que subverte a lógica do lugar de fala. Por exemplo, as constantes afirmações reacionárias que insistem que as políticas de cotas são, na verdade, produtos do racismo que consideram o negro como inferior, sem considerar as questões de reparação histórica frente a recém “abolição” da escravatura.
Se no passado essas lideranças seriam menos prováveis; em nosso presente, esses indivíduos são também respostas históricas da direita ao debate multicultural que denuncia a marginalização política. Contudo, precisamos estar sempre vigilantes aos modos em que os negros, LGBTIQ+ ou mulheres “no poder” representam vozes plebeias ou se são adereços para uma tradição política que seguirá marginalizando esses grupos.
O que o feminismo, o abolicionismo e o socialismo necessitam não é de uma aliança entre suas demandas, mas entender que seus pleitos são intrínsecos e dialeticamente relacionados, de modo que não podemos ser abolicionistas “e” “ou” feministas/socialistas.
Zillah Eisenstein tinha toda razão, só podemos pensar o feminismo emancipador através do abolicionismo e do socialismo. Até porque é impossível não ouvir o eco retumbante de Rosa Luxemburgo em nosso cotidiano: ou criamos o socialismo, ou aceitemos a barbárie.