Defensa de las mujeres, é o nome escolhido por Benito Jerónimo Feijoo para seu primeiro tomo do Teatro crítico universal.[1] Tal título seria facilmente rejeitado na contemporaneidade, porque se entende que mulheres são sujeitos plenos que podem articular seus próprios pleitos.
Porém, em 1726 o ato representava um grande desafio intelectual para o filósofo espanhol. Se a estrutura social de opressão contra as mulheres se alimentava da teologia, da biologia e do pensamento clássico, Feijoo fazia uso dos mesmos recursos conceituais para desmontar o construto machista com as mesmas ferramentas.
Em sua décima premisa, por exemplo, o pensador questiona se a natureza criaria auto-hierarquias entre a mesma espécie, uma vez que a existência do macho era indissociável da existência da fêmea.
Na premisa 59, Feijoo desafia a anedota filosófica sobre a superioridade do homem contra o leão e contra-argumenta a fábula explicando que o homem é apresentado como superior porque ele teve as condições históricas para escrever a narrativa.
De forma simplificada, se o homem escreve a história, ele é consequentemente melhor retratado já que a representação é mediada através de seu próprio discurso.
Meramente, por um lado, Feijoo antecipa em sua defesa das mulheres um gérmen da dialética hegeliana (1807) por emaranhar um acoplamento em que eu sou intrinsecamente dependente do outro.[2]
Como se o outro constituísse o meu próprio ser, como na analogia da impossível existência do macho sem o feminino. Por outro lado, o autor também se aproxima do materialismo histórico marxista por discutir as condições materiais para a montagem da narrativa.
Nesta dinâmica, o autor também acentua falhas de caráter inquestionáveis em homens como a traição de Judas e comensura de valores superiores em mulheres, como o caso da rainha Isabel, a católica.
Assim, Feijoo encurrala seus opositores com a impossibilidade de questionar os preceitos da Igreja e nem do Estado.
O pensamento de Feijoo articula o que chamaríamos de feminismo da diferença. Em oposição ao feminismo da semelhança em que os sujeitos são apresentados como iguais e, portanto, merecedores de igualdade.
O que nomeamos por feminismo da diferença é um aporte conceitual em que a equidade é defendida não por uma similitude biológica/social, mas a partir da diferença.
Isto é dizer, o autor argumenta que mulheres deveriam ser respeitadas pelos seus méritos pessoais e intelectuais e não constrangidas pela diferença de gênero.
A diferença da natureza biológica ou social não deveria ser aparato moral na distinção de direitos, mas a sociedade deveria garantir as condições materiais para que todes pudessem ser sujeitos plenos apesar de e com suas diferenças.
É curioso notar como o discurso feminista de Feijoo abre espaço para uma narrativa antirracista e anticolonial. Na premisa 85, ele desenvolve um debate em que o argumento filosófico de sua época se contradizia com relação aos temperamentos (frios e quentes), que eram vistos como características hierárquicas.
Neste argumento, ele diz que a analogia diria que os homens africanos seriam superiores a muitos homens europeus, apesar de seus julgamentos de valor contra os homens de África.
Feijoo rejeita qualquer ciência ou epistemologia que nutrisse discurso de hierarquia humana. E na premisa 97, o clérigo discute que a conquista de Cortés se ancora totalmente em condições materiais da sociedade europeia e não por superioridade biológica, estilhaçando a ficção de supremacia colonial.
Dito isto, Feijoo deve ser lido dentro das balizas do humanismo radical, já que o ser humano per se deveria ser valorizado para-além das ficções sexistas, racistas e coloniais vigente na Europa do século XVIII.
Interessante que o humanismo radical de Feijoo já era uma ferramenta conceitual que antecedia a eugenia pseudocientífica do italiano Cesare Lombroso (1876) que definia as características físicas dos criminosos, além de hierarquias intelectuais a partir da biologia.[3]
Não é difícil adivinhar que negros foram as figuras criminalizadas, mulheres as consideradas menos capazes e os homens brancos compostos de majestade quase-divina.
Contemporâneo de Feijoo, José Cadalso (1789) também debate sobre o abuso estabelecido dentro dos preceitos católicos contra as mulheres. Em Cartas Marruecas, o romance epistolar representa uma ficção histórica, já que o narrador supostamente havia encontrado as cartas de dois mouros, em um debate intelectual e teológico bem acalorado.[4]
Ao lermos a carta de Gazel a Ben-Beley, notamos a comparação feita por Gazel entre os costumes islâmicos e cristãos. Gazel reclama da intolerância sofrida pelos árabes que são acusados de poligamia por terem quatro esposas, enquanto os cristãos se casam apenas com uma.
Ecoando o discurso de Hernán Cortés, Gazel calcula que ele dormiria com 6.570 mulheres em um ano e aproximadamente 150 mil em toda a vida, desonrando-as e tratando-as como objetos descartáveis.
Por outro lado, Gazel diz que se um mouro opta pelo segundo casamento, ele deve dividir tudo o que possui de forma igual com sua nova esposa. Sem interesse em entrar na discussão moral sobre a poligamia, o que é interessante é que ambos os textos trazem para o cerne do pensamento espanhol do século XVIII uma polêmica em que o outro é visto como sujeito pleno.
Assim como qualquer pessoa que tenha lido Don Quijote, atenciosamente, pode afirmar que o texto levanta o debate sobre os direitos daqueles sem direitos, além de debochar da colonização ou da dita superioridade espanhola/europeia.[5]
Movimentos decoloniais/descoloniais nos instigam a descolonizar o pensamento do Sul Global como se fosse o nosso objetivo desatar-nos da dialética constitutiva, como se fosse possível chegar ao ponto de uma autenticidade racial e cultural.
De repente, todo o pensamento produzido em Europa pertence ao bloco inimigo que foi a razão pela destruição do Sul Global, já que todo europeu gozou do privilégio da colonização/imperialismo.
Ao mesmo tempo em que se preza pela negação do elemento europeu, se afirma dialeticamente a sua centralidade, de modo que o não-europeu só pudesse ser “descoberto” uma vez exumando o europeu das entranhas latino-americanas.
O problema com a falsa autenticidade ansiada pelo movimento decolonial é que desloca o real inimigo e passamos a ver mesmo as classes desprivilegiadas europeias como fonte de opressão. O opressor passa a ser localizado pela bandeira estampada em seu passaporte, ao invés do astronômico saldo bancário.
Tais dicotomias criam armadilhas epistemológicas de que deveríamos, por exemplo, favorecer a AMBEV, ao invés da Coca-Cola, já que é preferível apoiar o bilionário doméstico. Ou mesmo que projetos black-bilionaires ou bilionarismo indígena real ou literário gerariam um horizonte emancipador dentro do capitalismo para os sujeitos oprimidos na colonização.
Dita originalidade chega ao absurdo de defender que mesmo textos de Miguel de Cervantes, María de Zayas ou George Sand (Amantine Lucile Dupin) fossem parte de um ideário imperialista que rasgassem o potencial emancipador no Sul Atlântico.
Os decolonialistas esquecem que o romance picaresco Lazarillo de Tormes (anônimo) surge, na Espanha do século XVI, denunciando a fome enquanto Espanha se consolidava como um dos mais imponentes impérios globais.[6]
O problema da perspectiva decolonial é que apresenta qualquer europeu como um problema abstrato, retirando de nossas vistas as classes dominantes que geraram o real problema colonial e recentemente imperialista. No entanto, o problema do novo colonialismo é que a dinâmica de opressão coronelista, gamonal e latifundiária também parte de dentro.
O termo decolonial, além de pouco útil para o potencial emancipador, cria uma Europa tão grande e abstrata, que as classes dominantes conseguem se esconder entre tantos inimigos possíveis.
O outro problema é que o termo decolonial é mais palatável que anticapitalismo. Pior ainda, Deus me livre alguém dizer que comunismo seria a forma de se liberar completamente dos resquícios do colonialismo, já que seu ideal internacionalista desmantelaria o potencial sacrificial em sua raiz: desarticulando as classes dominantes.
Os estudos decoloniais em si não são a raiz do problema, mas são apenas um sintoma. Enquanto a direita alimenta a ficção de que as universidades são centros marxistas, temos uma obsessão intelectual da academia ianque obcecada por criar novos conceitos que sejam pomposos.
Uma academia crescentemente distante de uma potencia revolucionária já que está presa numa dinâmica de produção desenfreada frente a escassez de trabalho.
Como boa pompa, os termos podem ser recursos vazios e facilmente capturados pelo capitalismo, de modo em que se luta contra tudo, menos pela construção de um futuro plebeio que almeje o comunismo. Marx e Engels recusavam a criação de novas terminologias que não comunicassem uma realidade concreta para a vida comum.
Um futuro de liberação que não que aponte inimigos na classe trabalhadora. Enquanto alimentamos as repercussões decoloniais, ouvimos um forte coro contra o marxismo-leninismo e mesmo assim almejamos liberdade sem martelar o câncer gerador de todo a dor colonial. Talvez a decolonialidade devesse começar descolonizando o medo de chamar o desejo pelo nome.
E se um futuro comunista não for o desejo é porque até a presumida subjetividade decolonial já foi fossilizada pelo ideário capitalista.
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1 Feijoo, Benito Jerónimo, and Victoria Sau. Defensa De La Mujer: Discurso XVI Del Teatro Crítico. 1. ed. Barcelona: Icaria, [1726] 1997.
[2] Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, and M. J. Inwood. Hegel: The Phenomenology of Spirit. Oxford University Press, [1807] 2017.
[3] Lombroso, Cesare, et al. Criminal Man. Duke University Press, [1876] 2006.
[4] Cadalso, José, and Juan Tamayo y Rubio. Cartas Marruecas. Espasa-Calpe, 1975.
[5] Cervantes Saavedra, Miguel de. Don Quijote. Project Gutenberg Literary Archive Foundation: Project Gutenberg Literary Archive Foundation, 1901.
[6] Fiore, Robert L. Lazarillo De Tormes. Pegasus Press, 2000.