No dia 11 de janeiro o jornal Diário de Notícias publicou uma entrevista realizada comigo onde apontei para o início do que considerava um ataque ideológico do governo do presidente Jair Bolsonaro.
Nessa entrevista procurei antecipar um cenário muito difícil para a ciência brasileira que eu acreditaria sofreria um arrocho orçamentário ainda maior do que havia sofrido no governo Temer, e apontei as razões para isso.
Passados quase quatro meses desde aquela entrevista, o cenário para a ciência nacional não poderia mais trágico. O arrocho orçamentário que eu previ em janeiro acabou se confirmando em tons ainda mais forte do que eu antecipei, e os principais órgãos de financiamento da pesquisa deverão ficar sem recursos até meados de julho, o que deverá causar uma grave interrupção de projetos científicos e prejudicar a vida de milhares de jovens pesquisadores que são a espinha dorsal de um sistema científico ainda em formação.
RAZÕES PARA INVESTIR
Razões para financiar e investir em ciência não faltam nesta atual conjuntura histórica, como bem demonstram os investimentos massivos que estão sendo realizados pela União Europeia e pela China que estão alocando somas gigantescas para avançar a capacidade científica de modo a responder intensos desafios causados pelas demandas de mais produção e menos degradação ambiental. Desafios estes que são exacerbados pelos efeitos quase apocalípticos que estão acompanhando as mudanças no clima da Terra.
Só a União Europeia prevê gastar algo em torno de R$ 400 bilhões nos próximos oito anos em projetos voltados para alavancar o desenvolvimento de formas menos degradantes de crescimento econômico. Por sua vez, tornou os investimentos em desenvolvimento científico uma das principais prioridades para os próximos anos visando superar a dependência da exportação de manufaturados e se concentrar na produção de tecnologia de ponta.
CEGUEIRA IDEOLÓGICA
Mas reduzir os investimentos em ciência é apenas um dos braços das ações desenvolvidas pelo governo Bolsonaro. Um segundo braço tem sido apontar para uma suposta vinculação da ciência brasileira com interesses contraditórios aos interesses nacionais e pesquisadores como agentes de uma suposta conspiração que, entre outras coisas, visa convencer os brasileiros da veracidade de um inexistente complô de comunistas que seriam as mudanças climáticas.
Enquanto isso, o mundo já vivencia os efeitos práticos e devastadores de um clima global em transição, como se viu recentemente com o devastador ciclone que arrasou regiões inteiras de Moçambique.
CENSURA AOS DADOS
A verdade é que o ataque à ciência e aos cientistas brasileiros visa, na verdade, impedir que se documente as consequências práticas do retorno do Brasil a um estágio em que não havia qualquer contenção à exploração racional dos recursos naturais e que trouxeram graves sequelas sociais e ambientais.
Retornando à minha entrevista ao Diário de Notícias, eu prognostiquei que o encurtamento do aporte de verbas se daria de maneira mais forte naquelas áreas onde as pesquisas explicitassem o aumento da degradação ambiental e a ampliação dos riscos à saúde dos brasileiros.
FARRA DOS PESTICIDAS
Uma área em que tenho estado envolvido em pesquisas faz mais de uma década se refere ao uso de agrotóxicos na agricultura, bem como dos seus efeitos sobre a saúde humana.
Um estudo publicamente recentemente do qual sou um dos coautores mostra a contaminação por resíduos de agrotóxicos da água que é usada para consumo humano em um assentamento de reforma agrária no município de Campos dos Goytacazes (RJ).
Essas pesquisas de longo prazo estão agora ameaçadas pela inexistência de verbas federais ou estaduais que impede a aquisição de insumos básicos e a manutenção dos equipamentos com que se mede a presença desses compostos no meio ambiente. E é preciso frisar que a possível descontinuidade das pesquisas com agrotóxicos por pesquisadores em diversas partes do Brasil ocorre no exato momento em que o governo Bolsonaro já liberou mais de 100 novos compostos (muitos deles proibidos em outras partes do mundo) para uso nas nossas áreas agrícolas.
Em outras palavras, se aumenta a presença de venenos de poder devastador enquanto se diminui o financiamento das pesquisas que possam detectar, por exemplo, a contaminação da água que chega à nossas torneiras. Assim, temos a combinação do aumento da poluição com a diminuição do conhecimento desse processo, o que aumentará ainda mais as doenças causadas pela exposição a essas substâncias.
Entretanto, ainda pior do que impedir a detecção dos problemas de contaminação ambiental será o efeito prático de se aprofundar o atraso científico que já é grande e é um dos fatores pelos quais a economia brasileira segue perdendo lugares no comércio internacional. É que não há como ser uma economia de ponta apenas vendendo commodities agrícolas e minerais que é o que o Brasil está fazendo nos dias atuais.
CONCORRÊNCIA INTERNACIONAL
Até o Vietnã, que passou por uma das maiores guerras da história recente, já ultrapassou o Brasil em termos de participação no comércio internacional. E sem investimentos em ciência, o mais provável que mais países nos ultrapassem em um futuro próximo.
Assim, ainda que a condição difícil que a ciência nacional atravessa nas mãos de governantes que a veem como obstáculos às suas formas de agir possa parecer insignificante em face dos problemas vividos pelos brasileiros neste momento, eu digo que não poderia ser mais oposto do que este tipo de percepção. O Brasil depende fortemente de sua ciência para sair do buraco em que está, e quanto mais pessoas entenderem isso mais forte deverá ser a pressão para que cesse a asfixia financeira em curso. A verdade é que não haverá um futuro melhor sem um sistema nacional de ciência forte.