Discussões teológicas modernas apontam que seria o nome – e não o sangue – a fonte inesgotável do poder de Jesus Cristo. Essa lógica defende que o “sangue” seria uma conexão com a materialidade terrenal, enquanto o “nome” vincularia o Cristo com a dimensão transcendental.
Afinal de contas, Jesus deveria ser afirmado como uma divindade em vida e não lembrado por sua morte. Essa troca de objetos indica, em nossa intervenção, a fragilidade do sangue como um símbolo com significado limitante, por representações atadas e reduzidas as imagens físicas, como nascimento, vida, ferida, morte, entre outras.
Neste esquema, agir em prol do “sangue” do Príncipe, agora nos termos de Maquiavel, executaria vingança e/ou honraria a memória de um Príncipe ferido ou morto. O sangue marca um testamento planejado antes do incidente com o soberano, limitando assim sua lista de desejos.
Por outro lado, o “nome” como substância de poder tem uma função mais abrangente por pertencer ao ato verbal, justamente por não ser um ‘testamento estabelecido’ com a morte do líder, mas como um ‘testamento em estabelecimento’, isto é, em construção contínua.
Grosso modo, ao invés de apontar para um recurso testamental descrito como a vontade do Príncipe, fazer algo “em nome” do soberano vivo – sobre quem não temos acesso pleno – permite que a decisão real seja mediada pelos mensageiros “do nome”.
Em suma, mandar “em nome” de um soberano é uma operação que aciona o medo como uma das sensibilidades centrais desta discussão. A forma em que esse debate, aparentemente abstrato, se conecta com as nossas vidas cotidianas é pela forma em que o nome de Jesus se converte crescentemente em carta branca para bizarrices políticas, vide Damares Alves (ministra) na esfera federal.
Sem o interesse de focar na tragicidade óbvia do pesadelo bolsonarista, o ponto desta reflexão é pensar como esse vocabulário religioso vem sendo internalizado pelas massas, especialmente nas periferias.
Os grandes complexos industriais cristãos – que nada tem a ver com a fé das pessoas – utilizam bem essa mudança do centro do poder (sangue/nome), amedrontando com as consequências contra aqueles que desrespeitarem a decisão do Príncipe.
Uma periferia já amaldiçoada pela história oligárquica e recentemente pelo projeto bolsonarista, o terror de uma outra praga divina é o que menos deseja a classe proletária religiosa. Mas, de novo, falar que os magnatas de Cristo manejam bem os paranuês da manipulação religiosa seria louvar o óbvio e reverenciar a expertise de uma lista infeliz de ‘mensageiros’ do Céu (mas aparentemente obcecados com o inferno).
Mas, dentro da tradição marxista, existe um elemento óbvio que precisamos sempre recordar: a revolução emana do povo. O que fazer então quando o vocabulário falado pelas massas é atravessado por discursos contra-emancipatórios?
Queira a esquerda progressista ou não, o discurso religioso vem sendo um vocabulário basilar das massas periféricas. Se desejamos uma alternativa ao bolsonarismo, precisamos parar de demonizar o fenômeno crente e construir – urgentemente – um vocabulário para dialogar com uma massa que, atualmente, se identifica também como neopentecostal.
Não alcançaremos uma mudança de paradigma sem estabelecer uma comunicação direta e honesta com essa parcela da população que aumentou 61% nos últimos 10 anos (IBGE 2019). Porém, o interesse não deve ser domesticá-los, mas entender suas sensibilidades, incluir e termos a humildade de escutar e, dentro desse quadro, pensar em alternativas nacionais-populares com o povo e não para o povo.
Se não percebermos a colonização das sensibilidades, a violência contra os negros e pobres, e a presença religiosa como entidade ‘salvadora’ no subúrbio e nas zonas rurais, não conseguiremos estabelecer um diálogo producente.
De Canudos à ditadura, tivemos exemplos históricos de movimentos religiosos que avançaram em agendas populares e progressistas. Essas imagens históricas contornam a esperança de uma possibilidade de se restabelecer uma conversa que se dilui constantemente.
Ter uma esquerda que defende a democracia e a preservação ambiental, mas que falha ao se atentar à urgência da fome, da falta de teto e do desemprego se distancia a passos largos do linguajar que essa população utiliza.
Enquanto falamos em democracia, Estado de Direito e, corretamente, acusamos os delitos do neoliberalismo, os magnatas da fé fornecem recursos para entregar a cesta básica ou o cimento em “nome de Jesus”, ao mesmo tempo em que encomenda votos “em nome de Jesus”.
O paradoxo da esquerda atual é encontrar, precisamente antes de 2022, um ponto de contato entre o discurso progressista com o seu opositor antagônico no campo dos costumes.
Pensar que a vitória nas urnas contra o bolsonarismo virá com uma agenda que ignore essa base popular é profundamente ingênuo e, novamente, seria abandonar uma camada popular muito estimada pelas oligarquias do Reino.
Talvez, precisemos recuperar a importância do sangue derramado de Cristo, das mulheres, dos pretos, das travestis e dos humilhados em atos de tortura também executas por causa “do nome”. Há poder no “nome de Jesus”, mas aparentemente temos nos distanciado de uma aproximação potencialmente emancipadora do discurso da fé.