O meu título faz referência ao livro A condição da classe trabalhadora na Inglaterra publicado por Friedrich Engels em 1845. Nesse texto, o filósofo alemão descreve como o proletariado foi “chamado à existência com a introdução do maquinário industrial” (29).[1]
A desumanização da vida foi avançada já que os seres humanos passam a ser objetos de produção e reprodução fabril. No contexto da Inglaterra pós-revolução industrial, o autor explica como o crescimento da própria família era uma estratégia de sobrevivência para aqueles estrangulados pela fome.
Ao discordar de Adam Smith, Engels (1845) afirma que a vida do proletariado tem um potencial mais corrosivo até que a escravidão, porque o escravo custava mais caro ao proprietário que o trabalhador contratado. O proletário partia da ideia de liberdade que o forçava a se vender a escravidão assalariada como única forma de sobrevivência.
Na sociedade escravista, especialmente no contexto estadunidense segundo a análise de Engels (1845), o senhor de escravos tinha mais custos no mantimento da vida do escravizado pelo alto valor pago nos leilões (slave auctions) e pelos custos de alimentação e moradia precária daqueles que eram sua propriedade.
Pela nossa posição na periferia do capitalismo, é imprescindível considerar os modos em que uma massa de trabalhadores foi recusada de aceder aos meios de produção pela dinâmica racial implementada na colônia.
Isto é dizer, o fluxo de liberdade para escravidão assalariada bem descrito por Engels (1845) com relação à realidade britânica é reelaborado no capitalismo da dependência.[2]
Os negros ex-escravizados no Brasil não puderam, em sua maioria, virar efetivamente um proletariado pelo atraso industrial e pelo projeto de importação de mão-de-obra branca para as lavouras. A branquitude nos ‘levaria’ ao progresso e ‘apagaria’ o atraso da escravidão.
Por coincidência, a mesma Inglaterra examinada por Engels estava muito interessada na abolição da servidão escravizada no Brasil, pois desejavam expandir o potencial industrial e a proletarianização. Não havia relação com justiça social, era questão de lucro.
No dia 29 de setembro de 2021, o Jornal Extra trouxe uma capa inominável. Na fotografia, vemos quatro homens na faixa de seus 30 anos coletando carcaças bovinas.
A capa do jornal traz o testemunho do motorista do caminhão de ossos que nos avisa: “Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploram um pouco de ossada para fazer comida. O meu coração dói.”[3]

O testemunho do motorista traz três pontos centrais. O primeiro é a temporalidade que gerou uma mudança na raiz do pedido. O hoje é marcado pela transferência do alimento dos animais para humanos. O segundo ponto é a comoção da testemunha que insiste na humanidade frente a condições monstruosas.
O sentimento do motorista é uma insistência humanista de enxergar como humano aqueles que são tidos como escória. O terceiro ponto é a derrocada social que equaliza a necessidade humana com a dos cachorros.
Mas a fotografia traz outro ponto fundamental que não escutamos no testemunho do motorista: os homens – todos negros – parecem manter um ciclo com o alimento que eles consumiriam.
A imagem evoca os romances de Josué de Castro (Homens e caranguejos, 1967)[4] e Ana Paula Maia (De gados e homens, 2013)[5] como materialização de uma história que já nasce como farsa. E essas imagens – literárias e jornalísticas – levantam a tensão e dúvida sobre o que é homem e o que é bicho. Diante dos fascismos tropicais, a resposta é turva.
Se mudamos de jornal, vemos na mesma semana que os principais frigoríficos brasileiros reúnem as maiores altas da bolsa de valores.[6] Esse dado nos faz perguntar: como o lucro das empresas de carne tem aumentado frente à crescente miséria do nosso povo? Como as duas manchetes podem descrever o mesmo país? Ainda somos afetados/interpelados pela dor da fome?
Sem condição de responder essas perguntas, noto claramente que ambas as manchetes não representam um paradoxo, mas exatamente o oposto. De forma simples, o recorde nos lucros e a miséria extrema são correlacionados, ao passo que o recorde dos lucros produz as condições que animalizam os homens racializados que vimos na fotografia do Jornal Extra.
O único símbolo de esperança vislumbrado nessa imagem desoladora é a colaboração dos desamparados e a solidariedade da testemunha. A esperança vem de quando notamos o apoio mútuo daqueles que urgem por uma transformação social.
Na foto, o que importa não é o “eu”, mas o “nós”. Engels (1945) previa que a rebelião era a única possibilidade para aqueles que estavam sob condições insalubres e hostis à vida humana no período pós-fábricas. Na imagem, os rapazes se ajudam, um deles olha e parece haver cavado para que os demais colhessem as pelancas e as ossadas.
Com as ossadas vemos uma série de negativos: os ossos não são alimentos, eles não deveriam comer as pelancas, os bilionários donos de frigoríficos não deveriam existir e não há democracia enquanto houver fome. Se a dor é coletiva, na fotografia vemos potencial organizativo de quem pode se rebelar.
Ao perdermos a esperança nesse fundo de poço histórico, devemos lembrar que os oprimidos ainda têm a foice e o martelo nas mãos. E que tenhamos a decência de rejeitar o fatalismo e formemos parte da organização que enfrenta a romantização da fome. Diante da barbárie, só temos a revolução.
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[1] Tradução minha.
[2] Almeida Filho, Niemeyer. Desenvolvimento e Dependência: Cátedra Ruy Mauro Marini. IPEA, 2013.
[3] https://extra.globo.com/noticias/rio/capa-do-jornal-extra-sobre-garimpo-da-fome-repercute-em-todo-pais-no-mundo-politico-25217529.html
[4] Castro, Josué de. Homens e Caranguejos: (Romance). Ed. Brasiliense, 1967.
[5] Maia, Ana Paula. De Gados E Homens. 1a edição ed., Editora Record, 2013.
[6] https://www.infomoney.com.br/mercados/frigorificos-sao-as-maiores-altas-da-bolsa-em-setembro-e-analistas-destacam-oportunidade-em-jbs-e-minerva/