Após meses de incerteza e más notícias, alguns cientistas relutam em reconhecer o que podem ser boas novas. Reportagem do El País revela que durante as primeiras semanas da pandemia, estimava-se que seria necessário que cerca de 60% de uma população fosse contaminada para que se alcançasse a imunidade coletiva.
Três estudos feitos na Espanha para estimar quantas pessoas tinham contraído o coronavírus, entretanto, mostravam que em média essa cifra não passava de 5% da população, mas com grandes variações regionais – de 1,2% na província de Cádiz (sul) até 14% em Soria (norte).
A esperança parecia longínqua, e facilitar o contágio para alcançar essa proteção seria loucura. Com o passar do tempo, entretanto, acumulou-se informação que sugere que a proporção da população protegida contra o coronavírus ou pelo menos contra infecções mais graves é maior que refletida nos exames de anticorpos. Os especialistas, porém, não querem que esta informação seja vista como um incentivo para relaxar as medidas profiláticas.
“Estamos convivendo com os coronavírus há muitíssimo tempo. A maior parte deles provoca quadros respiratórios leves [como os resfriados], e outros, mais graves, como a SARS ou a MERS”, diz Juan Pablo Horcajada, chefe do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital del Mar, de Barcelona.
Quatro coronavírus causam cerca de 25% dos resfriados, e “é sabido que quando há uma infecção por um vírus da mesma família pode haver reatividade cruzada e é possível que o sistema imunológico gere anticorpos parecidos com os que neutralizam o outro vírus”, prossegue o especialista.
“Algo que não sabemos ainda é se esses anticorpos têm capacidade para proteger, ou em que medida”, observa.
Um estudo publicado recentemente na revista Science calculava que pelo menos 20% e talvez até 50% da população que nunca sofreu uma infecção pelo SARS-CoV-2 tem algum tipo de proteção celular contra ele, gerada, provavelmente, por um contato prévio com algum dos quatro tipos de coronavírus que provocam os resfriados.
RESFRIADOS X CORONAVÍRUS
Um dos fatores que fariam os coronavírus dos resfriados servirem de treinamento contra o novo coronavírus é que eles compartilham uma proteína em forma de agulha que serve para colonizar as células de seus hospedeiros.
Essa espícula está sendo empregada pelos laboratórios que desenvolvem alguns dos candidatos à vacina contra a Covid, pois é visto como um alvo contra o qual gerar uma reação imunológica que evite a infecção.
Mais difícil de explicar é o motivo das diferenças no número de contágios entre as diversas regiões da Espanha, um país onde, em princípio, as políticas e os hábitos culturais não parecem tão heterogêneos.
“Faria sentido para mim que houvesse mais proteção no norte da Espanha [uma região mais fria e úmida], porque pensaria que há mais resfriados, mas não é o que vemos”, especula Juan.
Jesus Rodríguez Baño, chefe de doenças infecciosas do hospital Virgen Macarena, em Sevilha, também considera que faz sentido a hipótese de que haja pessoas protegidas contra o coronavírus graças a um contato prévio com certos patogênicos, embora alerte que será preciso esperar uma confirmação epidemiológica dos dados vistos nos trabalhos em laboratório.
“Com a gripe acontece algo assim, há certo grau de imunidade depois de se contagiar com vírus similares da gripe”, afirma Rodríguez Baño. Porém, ressalta que o próprio fato de este vírus ter provocado uma pandemia de grandes dimensões sugere que esta proteção “não é algo generalizado”.
Conhecer a situação imunológica da população pode ajudar a revelar muitos dos mistérios que ainda persistem sobre o impacto desigual do coronavírus, mas medir a imunidade real, independentemente da geração de anticorpos, é algo que exige exames que atualmente são caros e difíceis de fazer.