O ajudante de ordens do ex-presidente (Jair Bolsonaro), Mauro Cid Barbosa, é um jovem tenente-coronel oriundo de uma tradicional família militar há anos atuando no Exército.
Seus avô e pai cumpriram missões na caserna muito antes dele nascer. Seu destino já estava traçado. Diga-se de passagem, ele o vinha cumprindo com galhardia, estudioso, disciplinado, trabalhador e leal.
A tradição familiar o favoreceu muito, é claro. Abriu portas, eliminou obstáculos, trouxe vantagens, oportunidades e rede. Contudo, engana-se quem vê na tradição apenas vantagens. Ela exige do herdeiro que continue prestigiando todas as crenças, valores, condutas, histórias e vínculos de seus ancestrais. Ai de você se nascer com uma opinião ou talento diferente do ambiente em que nasceu. Vai ser a ovelha negra da família e trabalhar sozinho por seu futuro. Quer um exemplo? Observe Michael Corleone na saga “O poderoso chefão”.
No início, militar e dissidente era tratado como personagem secundário. Com a morte do irmão, torna-se o poderoso chefe de sua família, reproduzindo o honrado perfil de seu pai, “o Padrinho”.
Um militar é educado para a guerra e, na guerra, a norma, ou melhor, a legalidade é frequentemente afastada para proteger outros valores, considerados momentaneamente mais importantes. Assim, cria-se uma bolha em que os seus componentes, envolvidos pela excitação, pelo espírito de corpo e pelo senso de dever têm sua capacidade lógica, comprometida, criando uma espécie de vale-tudo pelo ideal defendido. Este foi o ambiente em que o nosso jovem Cid esteve enredado e envolvido desde sempre, na escola, na academia, em casa, no trabalho e na vida social. Os militares esperavam saudosos por anos uma oportunidade para voltar ao protagonismo. E ela parecia ter chegado com Bolsonaro.
Na vida de Cid, tudo corria conforme planejado. Em 2018, ele se preparava para um período no exterior quando surgiu a indicação para o honroso cargo de ajudante de ordens do Presidente da República. Quem haveria de recusar um convite desses? Era um grande passo ao generalato.
O problema é que o seu chefe direto se apresentava como missionário de novas idéias, um líder numa cruzada contra os comunistas e corruptos. A palavra “guerra”, ouvida com frequência na caserna, era citada à exaustão por Bolsonaro e seus correligionários.
Era uma guerra diferente, é claro!, interna, travada contra outros brasileiros, considerados inimigos da bandeira, dos valores e da identidade nacionais. Nesta guerra só havia dois lados.
De um lado, estava a direita conservadora dos mais importantes valores do cristianismo e da cidadania, patrocinado pelo Presidente, pelos comandos das Forças Armadas, pelos generais, pelos amigos de seu pai, outrora seus professores, pelos seus colegas e amigos de farda. Ali, respirava-se uma auto visão fascinada e distorcida de grandes brasileiros honestos, valorosos e patriotas.
Os oficiais são educados para serem arrogantes, seguros de si, uma visão de superioridade. Não dá pra mandar um coitadinho pra trincheira, né? Assim, ele perde a guerra.
De outro lado, na visão daquele ambiente em que Cid vivia, estavam apenas os ladrões, os comunistas, artistas vagabundos e sindicalistas. Gente considerada sem nenhum valor, capitaneada por Lula.
De que lado você ficaria se estivesse no lugar de Cid, ouvindo isso todo dia? No de seus colegas de classe e trabalho, de sua família (pai e avô), de seu chefe e etc? Ou daqueles considerados inimigos? Se famílias inteiras e décadas de amizades não resistiram a esta polaridade, por que ele, que respirava involuntariamente um só lado, 24 horas por dia, haveria de resistir, ainda mais estando numa relação de subordinação com diversos tentáculos, Exército, Família e Trabalho? Difícil resistir, hein! Muito difícil! Para onde ele iria, se rompesse definitivamente com o Presidente? Para que Exército, família, meio social e etc? Nem havia outra escolha a fazer diante de tanta pressão sobre seus ombros.
A coação era irresistível. Além disso, como estava numa guerra, cada desvio de conduta, cada interpretação distorcida eram ressignificadas e vistas como atos de coragem e bravura, festejadas no universo íntimo em que transitava. Tudo justificava o resultado pretendido, notícias falsas, doutrinas ou ações antirrepublicanas.
Os principais ícones por quem havia sido educado e com quem trabalhava corroboraram, incentivaram e submetiam-se a tudo aquilo que ele testemunhava na intimidade. Seria ele um rebelde, um desertor, um dissidente? Nunca! Vou repetir: Difícil resistir, hein? Muito difícil!
Seria preciso ter o espírito de um gigante, um Leonel Brizola, uma Nise da Silveira, um Luiz Gama ou um Rui Barbosa para romper com tudo isso sozinho, rebelando-se e antagonizando-se com a fascinação e a distopia daquelas idéias e condutas. E ele, Cid, era apenas um homem comum, retirado de sua trajetória de sucesso, seria um futuro general de 4 estrelas, para viver o horroroso papel temporário de ajudante de ordens de um Presidente alucinado.
Envenenado por uma educação distorcida, por um meio social em epidêmica distopia alucinógena, cercado por um ambiente cotidiano (profissional, familiar e social) que tratava as relações civis e os adversários políticos como se estivessem numa guerra, não foi capaz de vencer uma coação cotidiana e irresistível de um chefe que sempre assediou todos com quem se relacionou, inclusive esposas e filhos, bonecos de seus delírios megalomaníacos. Suportou a tudo como um militar exemplar, ordeiro, responsável, trabalhador e obediente, concordando ou não.
Fazendo o que acreditava ser certo, sepultou definitivamente sua trajetória profissional por não ter sido capaz de ver além, de resistir, de não se curvar diante de inimigos de seu povo, atributo essencial exigido de um General em oposição a uma obediência cega desprovida de senso crítico. É preciso destacar que não foi educado para fazê-lo. Vide a maioria de seus colegas de farda.
Para piorar, em seu universo íntimo, ele ainda se encontra num grande dilema frente à delação. Se delatar será visto como traidor e covarde. Se não delata, parte para uma trajetória de bode expiatório, assumindo erros que jamais cometeria em outras circunstâncias. Alguns setores do exército já não lhe prestam a lealdade de outrora. Denegri-lo, favorece a promoção de outros. Neste quadrante, precisamos ressaltar a necessidade de um novo projeto educacional para os nossos jovens militares.
Em minha opinião é muito injusto atribuir-lhe responsabilidade total por falsificações e tentativas de liberação de jóias, entre outros atos ilícitos. Nas circunstâncias em que esses eventos se deram, Cid foi apenas um homem comum educado como militar para obedecer sem pestanejar; nem herói, nem muito menos um bandido. Diga-se de passagem que ele não errou sozinho. Erraram com ele sua família, seus companheiros de farda, o Exército Brasileiro e, principalmente, o Presidente, autoridade a quem serviu sem poder resistir, exatamente como foi treinado.
Ao Cid, restará apenas a delação e o julgamento injusto de seus colegas, professores, superiores e família (poucos entenderão que também contribuíram diretamente para os seus erros), além da interrupção de seu progresso no Exército e os traumas que carregará ao túmulo por estes 4 anos de horror. A ele, em sua solidão na cela, a minha solidariedade. Agora, poucos a oferecerão.
A mídia ignorante quer sangue. Que ele não guarde para si essas amargas lições em aprendizado, nem proteja quem quer que seja. A república e as Forças Armadas precisam desta catarse. Que as divulgue, publique. Por incrível que pareça, talvez, elas o tornam um homem maior e muito melhor. Não da forma esperada, cheio de cargos e medalhas feito bonequinho de chumbo, mas, de uma forma coerente e real, principalmente por dentro. Será um novo homem! Grandes homens do passado passaram por esta iniciação, Paulo de Tarso, por exemplo. Esta é a vez dele. Que Deus o proteja!