Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. […] O que é certo, na questão da punição, é que determinadas instituições, em determinada época, sentindo-se ameaçadas em sua solidez com a perpetração de determinados atos, taxa-os como puníveis […] Porque o crime significa um ataque à determinada instituição vigente, em grande parte das vezes e se não fosse punido representaria a derrocada dessa instituição e o estabelecimento de uma nova. […] A sociedade, porém, mais sabiamente, prefere falar num direito de punir, força unilateral garantidora de uma boa defesa contra o ataque à sua estabilidade. […] Houve um tempo em que a medicina se contentava em segregar o doente, sem cura-lo e sem procurar sanar as causas que produziam a doença. Assim hoje é a criminologia e o instituto da punição. Surge na sociedade um crime, que é apenas um dos sintomas dum mal que forçosamente deve grassar nessa sociedade. Que fazem? Usam o paliativo da pena, abafam o sintoma […] e considera-se encerrado um processo (Por Clarice Lispector – [1941], apud CAMURI: 2012, p. 48).
Mediante a proliferação exponencial do isolamento extremo no sistema penitenciário moderno, a linguagem usada para descrevê-lo, bem como seus fins declarados, também sofreram mudanças. Originalmente, o encarceramento solitário tinha por fim – e conceito – a redenção da alma através do recolhimento silencioso.
Hoje, no entanto, geralmente usa-se essa modalidade específica, a solitária, como forma de punição dentro do sistema de encarceramento institucional que já é um sistema de exclusão social, ou ainda como medida disciplinar para o isolamento de detentos “problemáticos”, mantendo-os incomunicáveis, ou seja uma punição dupla, sem nenhum mandado judicial ou devido processo legal/due process.
Nos Estados Unidos, por ironia, grande parte da população carcerária vive em celas compartilhados/superlotadas e trabalha em ambientes coletivos.
Em 31 de dezembro de 2016 estimava-se que um número de 6,613,500 pessoas encontravam-se sob a supervisão dos sistemas correcionais para adultos nos EUA. Disponível em: <U.S.A. Office of Justice Programs Bureau of Justice Statistics https://www.bjs.gov/index.cfm?ty=pbdetail&iid=6226>. Acesso em: 27 de julho de 2018.
No entanto, nesse trabalho, argumento que a reorganização do sistema penitenciário moderno e sua conexão entre o legado das entrelaçadas histórias de congregação e segregação nas prisões modernas tem origem no sistema escravocrata do século XIX, bem como seu declínio, que daria fim a mão de obra barata e necessária para o desenvolvimento da economia de mercado livre.
Pois, é evidente que a introdução do sistema de arrendamento de detentos, instituído após (ou talvez como pré-condição para) a ratificação da abolição da escravatura nos EUA baseou-se peremptoriamente na exploração dessa mão-de-obra que passaria a substituir o trabalho escravo institucionalizado.
Ou seja, a penitenciária passou a ocupar o local de produção da mão de obra escrava antes ocupado pelo continente africano e pelos corpos de seus habitantes nativos, reduzidos à condição de escravos e transplantados à força para as Américas.
Contudo, é outrossim pertinente afirmar que o racismo, aliado às “boas intenções” dos reformistas religiosos do início da república estadunidense, contribuiu sobremaneira para a ascensão do sistema penitenciário moderno. Portanto, podemos concluir que, o sistema penitenciário contemporâneo proporciona um palimpsesto de opiniões e iniciativas fracassadas, muitas das quais fundamentadas por um cunho religioso, sobre como lidar com os infratores da lei.
MOLDAGEM DO SISTEMA PENAL
Foram essas opiniões que moldaram a pena estatal de uma maneira que perdura até os dias de hoje, implementando uma política de criminalização da miséria que é complemento indispensável do trabalho assalariado precário e sub-remunerado, apesar da consistente falha e incapacidade de suprimir ou reabilitar comportamentos anormais e o crime.
Financiado por corporações da iniciativa privada e por políticas de governo neoliberais, o fim ontológico das políticas públicas do Estado de Bem Estar garantista foi deturpado e deu lugar ao surgimento de políticas públicas contrárias aos direitos humanos e civis conquistados na segunda metade do século XX.
Direitos fundamentais foram redefinidos como privilégios e, assim, deslocados do setor público para o privado. ONGs, igrejas, instituições privadas e fundações assumiram o comando das várias responsabilidades sociais outrora atribuídas ao Estado, como a saúde, educação, trabalho e segurança.
Por conta desse movimento utilitarista neoliberal, introduziu-se o elemento “lucro” como medida de sucesso para necessidades humanas comunitárias básicas, bem como instituições e políticas de direito civil. Essa tendência afetou todos os setores da vida comunitária além dos projetos de desenvolvimento e políticas públicas.
No campo da segurança pública, o que antes era um direito natural de TODOS, passou a ser um produto de consumo para os mais abastados. O sistema carcerário perdeu seu caráter reabilitacionário, que em tese buscava reintegrar o ser humano que cometeu um ato infracionário, para assumir o papel de guardião/vigilante, cuja função passou a ser identificar e expurgar o “lixo” humano da sociedade, o delinquente.