A desobediência, enquanto conceito moral exemplificado no mito de Antígona é uma das características dos poetas malditos. O termo é relevante para as vanguardas do século XX, não apenas porque alguns dos seus precursores foram qualificados como malditos, mas porque estas, com sua postura polemista, iconoclasta, tendiam a sofrer grande resistência nos meios culturais.
Um outro aspecto importante. Como exemplo, podemos citar alguns versos de “Deus Furioso” (Motta, 1996, p. 48): “Estendi mãos generosas/ a quantos permitiram/ e disse: sou Deus./ Quem acreditou?/ Fui humilhado,/ escarnecido: Deus viado? […]”. Ou em poema sem título: “Mundo cão/ osso de alegria/ única ração” (Motta, 1996, p.31). Ainda em: “Tudo em riba do penedo/ tudo em cima do morrão/ Todo mundo atrás de Deus/ Deus atrás de todo mundo./ Deus fiel e bão, que atiça/ o fogo da vida em nosso rabo” (Motta, 1996, p. 30).
Um outro aspecto importante da obra de Motta é o que diz respeito às técnicas empregadas que constituem uma singularidade do seu projeto literário e de sua aventura artística. É o poeta que nos indica no prefácio ao livro: “Não resistindo à tentação da pilhagem, surrupiei também a ‘flor da circuncisão’, de Lorca; de Drummond, ‘No meio do caminho tinha uma pedra’ virou “No meio do caminho eis a pedra” (Motta, 1996, p. 18).
Algumas investigações poderão descobrir outros roubos e delitos deste transgressor” (Motta, 1996, p.18). A aparente pecha da vulgaridade é abonada pela série de epígrafes, tanto na entrada do livro quanto no seu interior, com um jeito especial de abandonar-se nos clássicos: salmos da Bíblia abrem “Bundo” e duas epígrafes dão entrada a “Waw”, “Je veux La liberte dans le salut”, Rimbaud, e “Cuando más alto subia,/ deslumbroseme la vista,/ y la más fuerte conquista/ em oscuro se hacía;/ mas por ser de amor e lance/ di um ciego y oscuro salto,/ y fui tan alto, tan alto,/ que Le di a la caza alcance”, de San Juan de La Cruz.
Chamo a atenção para o texto “No Cu do Mistério”, cuja epígrafe “Visita interiore terrae, rectificando inveries occultum lapidem”, mais uma vez comprova o que foi aventado acima. É este o texto na íntegra:
Charadinha alquimista Em honra aos arautos da utopia, em prêmio aos seus tantos sacrifícios e para o consolo dos aflitos, revela a sapiência do Espírito Santo que o buraquinho fedorento é a passagem secreta para os universos paralelos, o caminho da eleição dos santos e heróis, a via estreita da liberdade dos cansados e oprimidos. Protegido por monstros legendários, milenares interditos e artifícios incontáveis, proscrito e disfarçado a todo custo, é por ele o acesso ao manancial da vida, que aos destemidos concede o gozo das venturanças, e somente ele conduz ao filão das maravilhas, jazida da Pedra Filosofal, sendo a única estrada para o centro de Luz, a Cidade Azul dos Imortais, refúgio da Deusa eternamente virgem & seu Pai, Filho e Esposo excomungados. “Desencantai os vossos mitos”, roga o Santíssimo Espírito de Mamãe Serpente, “ó meus desgraçados filhos, cativos das loucuras racionais; ó estúpidos demônios, reféns de vossas culpas e mentiras, escravos dos trabalhos exaustivos e inúteis, resgatai os vossos corpos ao jugo do Maligno. Desencantai os vossos mitos, ó meus amados filhos, e sede felizes!” (Motta, 1996, p. 61).
Destaco, a seguir, algumas observações que considero relevantes para a análise de Bundo e outros poemas (1996):
1 – O poeta guarnece seus textos, reitero, com uma série de epígrafes, tanto na entrada do livro quanto no seu interior, com a intenção de ter um respaldo da tradição e do eruditismo, mas como “maldito”, subverte-os, provocando uma poesia anticanônica e marginal-periférica;
2 – Expondo-se mais do que nunca, o poeta, no entanto, escolheu um tom solene e pregacional para a maioria dos poemas em “Bundo” e “Waw”. Claro que há alguns poemas bem lúdicos, como os lúdicos atos “serpentecostais”, porém com o toque de maldito, usando formas métricas diversas, às vezes híbridas, pois clássicas e populares ao mesmo tempo: um exemplo são as redondilhas maiores e menores em “Tudo em cima do penedo/ tudo em cima do morrão/ Todo mundo atrás de Deus/ Deus atrás de todo mundo./ Deus fiel e bão […]” (Motta, 1996, p. 30);
3 – O escárnio e o maldizer permanecem desde os seus primeiros livros e adquirem em Bundo e outros poemas um lugar definitivo e de destaque na poética de Waldo Motta. A obra está aí, com lugar garantido na história da poesia brasileira contemporânea, como poesia maldita, pois foge ao trivial ou à média do que vem sendo escrito ultimamente para reiterar argumento de Berta Waldman e Iumna Maria Simon.
Não se pode negar a Waldo Motta sua presença como um dos expoentes de poesia marginal periférica e maldita na literatura brasileira contemporânea. Como poemas homoeróticos, obscenos ou messiânicos, o que me chama mais a atenção é a construção e a técnica ao mostrar sua pesquisa, a preocupação e o esmero com a forma e com a transgressão a que se propõe, o erotismo sagrado, textos que tratam de temas polêmicos, como os das cantigas de maldizer e de escárnio, de outros autores malditos como Gregório de Mattos Guerra, Bocage, entre outros, considerados também malditos.
Há um Waldo, que, a todo o tempo espreita a si mesmo, seja para quebrar a “aura” do pão – “Pão excrementício/ generosíssimo banquete/ de humilde vermes” – seja para cantar os colarinhos sujos dos hipócritas.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Sandra. O poeta indomável cobaia de um homem maldito. In: A Gazeta. Vitória, 25/03/1984. Caderno Dois, p 2-3.
AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. Lira dos sete dedos – a poética de Waldo Motta. Coleção Autores Capixabas, Vitória, SEC, 2002.
BECKER, Howard. Mundos artísticos e tipos sociais. In: VELHO, Gilberto (org). Arte e Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
ESTADO DE SÃO PAULO. Caderno Literatura. São Paulo, 1984.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Esses poetas – Antologia dos Poetas dos anos 90. Disponível em: , acesso em 15 set. 2013.
MOTTA, Waldo. O signo na pele. Vitória: Edição alternativa, 1981. ________. Salário da loucura. Vitória: 1984. Mimeo.
________. Eis o homem. Vitória: Ed. Da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1987.
________. Poizen. São Paulo: Massao Ohno, 1990.
________. Bundo e outros poemas. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.