Em Instantâneo (4), a narradora fabula sobre mais um quadro da instantânea miséria, ao descrever, com juízos de valores permeados no texto e no vocabulário, uma foto de Luciano Andrade – “Um menino preto de carne e osso, e uma estátua branca de pedra.” (p.17) Diz-nos a narradora:
Trata-se do flagrante de um garoto brasileiro dormindo profundamente no colo de uma estátua talvez de mármore, de inspiração clássica. Ela parece uma pré-adolescente ou, quem sabe?, um rapazinho amoroso desembarcado há instantes da Grécia. Estão ambos sob um arbusto cheio de folhas, talvez flores pendidas de ramos altos. Mas nada se vê com nitidez nessa cópia desbotada. (p. 17)
É um dos momentos mais solenes do livro. Estética e crítica tomam o lugar da ficção: “Uma última questão; estaremos discutindo insensatamente uma afirmação do senso comum de que uma boa fotografia não pode mentir?” (p. 19).
E continua a tese: “Pois já está provado que a câmara escura não é neutra nem inocente e ninguém duvidará que a arte e crítica estão indissoluvelmente ligadas na foto de Luciano Andrade, forçando a noção, jamais pragmática, da relação da arte com o mundo.” (p. 19)
Para Walter Benjamin (1994), a verdadeira narrativa possui uma dimensão utilitária e uma das causas que colaboraram para o fim das narrativas com esse sentido utilitário foi o surgimento do romance no período moderno, visto este não possuir sua origem na tradição oral.
Enquanto o narrador, ao contar uma história, retira os fatos narrados de suas próprias experiências ou de outras pessoas, o romancista faz do ato de narrar algo isolado, sendo assim, não adquire conselhos e também não sabe como transmiti-los. Esta premissa de Benjamim não se aplica à narrativa de Vilma Arêas, que é observativa, detalhista, subjetiva e investigativa/instigante: “Ou, quem sabe, talvez aspiremos um cheiro de morte envolvendo essa foto, apoiada no sono dos humanos e na inconsciência das estátuas, por mais acolhedoras que pareçam.” (p. 19).
Os seres “incompatíveis”, como são nomeados o menino preto e a estátua, pergunta-nos a todos a narradora: “Estarão atados na tríade clássica da natureza e do erotismo, mediados pelo sagrado?”. Um embate teórico? O próprio texto nos responde, de forma bastante clara e objetiva. Depois de nos fazer pensar, rapidamente, a narradora conclui:
Mas o que surpreende aqui – para além de qualquer tese explicativa – é que os processos de construção literária – deslocamentos, metáforas etc., que problematizam o sentido direto do que se escreve – já estão expostos na cena fotografada e oferecidos – com alguma urgência? – à compreensão do observador. (p. 20)
E ao transportar a cena da estátua com o menino, de um espaço público para o “jardim da mansão de um ricaço qualquer” (p. 20), rasga as conjecturas, rasga a fotografia embaçada, para trazer luz à cena, de forma bem contundente e objetiva, respondendo ao que antes nos perguntou: “Mas como foi dito antes, embora se adivinhe tudo, nada se vê direito nessa cópia desbotada.” (p. 20)
Todos os contos versam, enfim, sobre a hibridização do olhar e suas interfaces com a arte, a literatura e a cultura contemporânea. A multiplicidade de perspectivas analíticas e críticas presentes na circularidade da cultura, em Um beijo por mês (ARÊAS, 2018), são vistas como exploração das fronteiras de gênero e não científicas, locais e universais, e, paradoxalmente, indicam que esses fenômenos fazem parte da cultura e estética emergentes no devir do homem contemporâneo, complexo e mimético de si mesmo.
Diante disso, há tentativas de desenvolvimento de conhecimentos polissêmicos mesmo quando há perdas dos referenciais culturais, mas, no composto interdisciplinar do conhecimento, desenham-se inúmeras perspectivas e possibilidades multirreferenciais da produção do saber e do jogo no ato de escrever.
Por isso, faz-se necessário entender a cultura contemporânea associada a múltiplos formatos e expressões, escritos, relatos, fotografia, pintura, observatório cujos processos de convergência midiática em sua variedade de linguagens têm como estímulo a exploração simultânea de uma infinidade de maneiras de interagir com uma história e os seus sujeitos.
A transmidialidade da obra recoloca a potencialidade dos produtos culturais no contexto da transitoriedade da obra de arte como algo inacabado e que exige do expectador um pacto de fruição, uma participação ativa a fim de perceber a obra como um objeto aberto a várias possibilidades interpretativas: “Estes são os mesmos volteios – deslocamentos, metáforas etc. – que fazem com que a literatura às vezes nos envergonhe.” (p. 20).