Ao suavizar suas tintas de cóleras, de paixões, de fomes, cuidado para não se desbotar (Mara Coradello)
Na poesia de Mara Coradelo, em Post its de carne & putrefação, inclusive em seus livros anteriores, há um respeito à vida, ao que se nos apresenta como vivo, mesmo que já seja passado ou que tenha, digamos “morrido”, MAS VIVO NA MEMÓRIA: sentimentos, situações exóticas, cheiro, olfato, sexo, toque, arquitetura, formas de desejo, sofrimento, tesão, amor, bebida, amor próprio, todos estão juntos como se expostos numa prateleira de mercado humanístico, a nossa escolha para fazer-nos degustar nas palavras e situações, em coisas do dia-a-dia, mas sobretudo nas palavras simples que situadas e usadas, tanto para compor sua prosa poética ou seus versos, leva-nos, leitores mais atentos, ao âmago das angústias, das alegrias, do amor, do disfarce, em simulacros anamórficos que nos são mostrados pelo eu-lírico da autora.
Isso se dá muito repetidamente nos escritos que são únicos na Poesia Brasileira Contemporânea. Talvez, por isso, tão premiada.
Pensar as formas da crítica literária é pensar também as formas de história literária no presente. Não há possibilidade de crítica dos objetos literários sem uma base histórica, isto é, sem uma postulação de sentido histórico, um quadro de referência que permita ao crítico avaliar uma obra segundo um duplo aspecto: o primeiro é a reivindicação de herança cultural e o segundo, a aposta num possível legado.
Desde que se dissolveu o quadro clássico, no qual a aferição da qualidade se dava sobretudo a partir da consideração de obras modelares em seu gênero, emuladas pelas obras novas, a crítica se tornou radicalmente histórica. Ou talvez seja melhor dizer: a crítica ficou submetida à história.
O que quero dizer é que, diante de um objeto novo, a avaliação moderna se processa por uma espécie de revisitação do passado, em busca de ponto de referência para a interpretação. Segundo seu entendimento, sua inclinação e sua época, o crítico falará de linhas evolutivas, influência, intertexto, contestação, paródia etc.
De fato, filiar uma obra a uma tendência ou matriz é talvez a forma mais usual e produtiva de compreensão. Mas como a própria crítica trabalhou incessantemente para denunciar os mecanismos de poder que constroem os cânones, e uma vez que o passado e o cânone (ou os cânones, no caso) são construções discursivas, a obra nova, o passado e o cânone se modificam mutuamente.
É o que, entre outros, observaram Eliot e Borges – o primeiro ao entender o cânone como uma ordem ideal constantemente em mudança; o segundo ao propor que um autor forte cria seus próprios precursores. E é o que está literalmente presente na leitura e também presente na escrita em todo Post its de carne & putrefação: “Ao suavizar suas tintas de cóleras, de paixões, de fomes,/ cuidado para não se desbotar” (Coradello, 2021, p. 39)
Hoje, quando as fronteiras entre o que é e o que não é literário são flexíveis e incertas, quando o estético já não se sustenta a partir do cânone, mas, pelo contrário, se vê explicitamente submetido ao político (e aqui estou pensando, por exemplo, nos cânones alternativos, nos quais o valor estético ou se quer outro, ou é modalizado por, ou tem menor importância do que o recorte político, sexual, étnico, genérico), mais se faz evidente, neste livro de Mara Coradello, nos poemas, para o bem e para o mal, o mecanismo crítico básico de avaliar o objeto inserindo-o numa narrativa particular, dentro da qual ganha densidade e sentido.
E se é verdade que o solo da crítica não é mais tão firme quanto já foi, porque hoje ela é sempre suspeita de estar submetida à autoridade do passado canônico, é também verdade que dela se passa a exigir muito mais, na medida em que qualquer crítica se vê agora na urgência de situar-se historicamente, de uma forma ou outra, perante as novas propostas de cânone apresentadas no entorno da obra ou no miolo da cultura de seu tempo, como em “Para o moço do Transcol 500”, belo poema que tomo como exemplo do que pode parecer um poema simplório. Nada mais equivocado:
O homem no ônibus tinha uma cor/ Dessas de cacau/Sem glútem e lactose.
Tinha certo excesso de peso,/ um macho muito ideal (…)
Casei por minutos com o moço de estrutura mediana,/ de braços cheios,/ que ondulava ao largo da terceira ponte./ Nos separamos na Avenida Vitória.
Fui, resoluta e saudosa. (p. 37)
Isto é, a aguda historicização do cânone exige ainda mais da crítica que ela se situe historicamente, na medida em que a obriga a continuamente retraçar a história para compreender a ocorrência ou justificar a escolha do seu objeto, principalmente o aspecto anamórfico do simulacro. Ao mesmo tempo, está claro que tratar criticamente um objeto é fazer um gesto de escolha não somente sobre o campo do presente, mas principalmente sobre o campo do futuro.
O desejo de intervir no presente e agir sobre o futuro é indissociável do ato crítico em literatura, uma vez que este – se não se resigna a ser apenas vítima do marketing das editoras e dos autores – é sempre, além de um desejo de conhecimento de um objeto particular, uma eleição e uma aposta. E mesmo quando se apresenta como pura afirmação de gosto, o ato crítico tem em vista a direção do futuro, por meio da afirmação ou da recusa do que deve ou não deve ser valorizado, do que merece ou não merece continuidade. Isso, é claro, porque o presente oferece uma enorme variedade e quantidade de objetos novos, filiados a cânones distintos e concorrentes. Isso está claro e evidente em toda a obra de Mara Coradello.
Sendo assim, em sua literatura, o ato crítico, ainda que se queira apenas um ato de compreensão ou avaliação, é antes de tudo um gesto de eleição. Destacar como digno de atenção crítica um objeto em meio à miríade de objetos que se oferecem significa reconhecer sua importância ou seu poder.
Não se critica nem se ensina o anódino, mas apenas o que se elege como bom e exemplar – ou como mau, caso traga em si algum potencial de perversão do que a poeta considera o melhor rumo do presente: “Estar no meio/ bicha, mulher, padre comunista, /trans, trava,criança, pássaro,/negra, negro, pobre, artista,/ jovens homens pretos sem camisa/ em poças de seu próprio e derramado em vão/sangue./ Enquanto o capataz e o senhor de engenho/ medem forças,/na senzala os corpos caem./ Enquanto eu for forte/ gente/ lúcida,/ vou ser louca, fraca, resto, à margem,/Flor no vão do asfalto/ morro, pedra, garrafa de cachaça,/miragem de meu próprio medo.” (p. 17)
Assim, não apenas não creio que seja possível fazer crítica consequente sem uma base histórica (isto é, no limite, uma opção por um enredo e narração), como também não acredito que seja possível compreender plenamente a crítica feita (isto é, o lugar de onde se produz o juízo de valor e se processa a interpretação) sem conhecer as principais linhas hegemônicas (ou em disputa de hegemonia em um preciso momento de um dado universo cultural) de interpretação histórica. O poema acima acima é um exemplo de quão atual é o assunto emblemático, recapturado anamorficamente pela poeta. TUDO aí é hoje.
Na psicanálise de Sigmund Freud, o princípio de realidade caracteriza-se pelo adiamento da gratificação. Tal princípio opõe-se ao princípio de prazer, o qual conduz o indivíduo a buscar o prazer e evitar a dor sem restrições. Essa realidade é dominada pela necessidade, escassez e forçosamente pela luta da vida.
Segundo a Teoria da Personalidade de Freud, o princípio do prazer é o que guia o Id. Isso quer dizer que o Id é sua força propulsora. Sabemos que o que o Id busca é a satisfação imediata dos impulsos humanos. Que por sua vez, podem ter caráter de desejo ou de necessidade primária.
Sendo o princípio do prazer a força motriz do Id, podemos concluir que ele tem como único objetivo satisfazer nossos impulsos primitivos. Esses podem ser o impulso da fome, o da raiva ou o sexual. Lembremo-nos que para Freud o Id é a parte biológica da mente humana, presente desde o nascimento. Assim como pode ser considerado como a origem das mais intensas motivações humanas, é a instância mental que tende a permanecer mais enterrada no campo inconsciente. Basta perceber como agem os indivíduos na primeira infância.
Enquanto o Id é guiado pelo princípio de prazer, o Ego é guiado pelo princípio da realidade. Sua principal função é satisfazer o máximo possível os desejos do Id, mas de uma forma socialmente adequada. Nesse sentido, o princípio da realidade se opõe ao princípio do prazer. Mas não para anulá-lo. Sua função vai no sentido de mediar os impulsos do Id para que eles sejam satisfeitos de acordo com os princípios morais da realidade social.
Resumindo, vida (Princípio do prazer) e morte (Princípio da realidade). Ficar em cena ou sair de cena?
Sair de cena
A escritora retirava-se de cena,
Por não querer algum traço seu a interromper a
Construção,
Por parte do leitor,
Do rosto da voz narradora.
Não havia cena na escrita,
Se o árduo trabalho de comer enquanto escrevia,
Para corromper a ansiedade em alimento de verbos,
Conjunções,
Matáforas,
Dislexia ritmada.
A escritora agora era um sumir-se no nevoeiro
De palavras que a aturdiam,
Que traziam em si
O tempo, o amor, o desespero, a cidade,
A incomunicabilidade.
O incomunicar era gritado,
Em meio à armadilha de
Costurar-se
Do avesso. (p. 71)
Digo que a escritora, ao escolher trabalhar as palavras, da forma mais contemporânea possível, é sagaz, pois liricíssima! Trabalha seu canto de modo que quem fica é ele. Uma constatação fácil de fazer é que, na contemporaneidade, as tentativas de definição de poesia fracassam com mais rapidez do que as de romance ou conto – isto é, de obras em prosa que, de uma forma ou outra, contam uma história.
Em Coradello, os poemas conceitualmente demandam a descrição do campo, para poder ser compreendido e valorizado. Como um gesto, precisa de um contexto e de um conjunto de expectativas. O erguer um braço, por exemplo, tem sentido diferente numa manifestação política e numa sala de aula ou num encontro na rua. O que faz deles “poemas” é o gesto que os constituiu como poemas. E a propriedade do gesto, quero dizer: o seu sucesso em ser entendido como um gesto carregado de sentido.
SOBRE A AUTORA
Mara Coradello, nascida em 1974, formada em Comunicação e mestre em Arte pela UFES, autora das obras “O colecionador de Segundos” (7 Letras — 2003), “Armazéns dos Afetos (Edufes — 2009), “Histórias de amor recolhidas ao acaso” (Secult — 2013 ), “Escaras e decúbitos” (Secult — 2014), “A alegria delicada dos dias comuns” (2018). Integrou a antologia “25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira” (Record — 2004), organizada por Luiz Ruffato. Orientou diversas oficinas de criação literária, comunicação crítica e crônica.