A busca do autor, em toda sua obra, que é universal, inicia-se na direção a que o ser humano se sente impelido, mesmo ciente de que talvez não chegue ao fim, sempre contador, em primeira pessoa, de uma situação caótica. O autor nos diz que:
Esse contador de histórias é, não o esqueçamos também, em todas as circunstâncias, um mistificador, um mistificador impenitente, de alguma maneira sem desculpa, salvo a do seu génio, se teve essa extraordinária sorte no momento da repartição cósmica das graças... Conta sempre as mesmas histórias, sabendo bem que elas não são mais do que umas quantas palavras postas umas atrás das outras, suspensas em equilíbrio instável, frágeis, sempre sob a vertigem do não-sentido que as atrai, já livres ou conservando ainda um resto de organização, para esse fantasma imundo que sempre está à espreita, o caos que ameaça constantemente todos os nossos códigos, cuja chave, a cada momento, corre o risco de perder-se. (Idem, ibidem)
O homem (escrito com h minúsculo) pede ao rei (escrito com r minúsculo) um barco. O rei pergunta-lhe para que fim. O homem esclarece que almeja sair para buscar e encontrar a ilha desconhecida, a qual os geógrafos já haviam adiantado, não mais existe, pois todas as ilhas desconhecidas já foram buscadas e encontradas e assim já se tornaram conhecidas. O homem argumenta que assim são todas as ilhas até que alguém desembarque nelas. Com o apoio da mulher, empenha-se em sua “busca”.
Questionamentos afloram:- o que buscamos durante a vida inteira, nós, os seres humanos: a verdade, a felicidade, a segurança, ou buscamos o que não conhecemos pela simples razão de precisarmos fazê-lo?- por que sempre buscamos, em um movimento dialético, a maioria das vezes sem entender bem o quê? A busca faz parte de nossa condição humana. E a personagem de Saramago insiste em seu intento e encontra o que procura. Qual o propósito da busca daquele humilde súdito? Que ilha desconhecida é essa?
Partindo do lugar-comum filósofico de que “todo homem é uma ilha”, o personagem do conto quer descobrir a si mesmo, o sentido de sua existência. A ilha desconhecida é uma metáfora da consciência, daquilo que costumamos chamar de “o mundo interior”, ou seja de suas subjetividades virtuais.
Seu projeto de “buscar a si mesmo” na imagem poética de uma ilha misteriosa, como são misteriosos os sonhos humanos, reflete um anseio que é universal e que nos move desde os tempos mais remotos.
Cada aventureiro, ou viajante, que desbravou novas terras estava tomado por essa estranha obsessão: transcender-se, superar-se, ir onde nenhum outro jamais esteve, descobrir algo fora de si que traga a compreensão de verdades mais profundas, escondidas na alma (como uma ilha). Mas tudo isso é muito pouco em se tratando de um autor como José Saramago.
Em O Conto da Ilha Desconhecida, a dificuldade de visualizar e amar o invisível, de construir o “novo” a partir do lugar onde nos encontramos, concepção de uma crise das utopias e dos lugares onde se instaura tal crise, inclusive a literatura, apesar de chamar-nos atenção para a necessidade de uma nova ordem social e econômica, mas também cultural, necessária a qualquer sociedade que resulta de uma complexidade de relações que asseguram um sistema marcado pelas desigualdades, principalmente pós-globalização.
Diz-nos Saramago a respeito:
Se proponho esta alternativa, que coloca frente a frente, por um lado, as técnicas mais ou menos elaboradas e já correntemente usadas do «monólogo interior» e, por outro lado, as técnicas do «narrador omnisciente», muito mais ingénuas, universalmente e desde sempre utilizadas, é porque penso, no fim de contas, que todos os processos narrativos, já inventados ou futuros, não têm e não terão nunca senão um objectivo: constituírem-se, cada um deles e todos juntos, como meios de pesquisa e de expressão que aspiram à globalidade. E que estes processos não são mais do que instrumentos que o autor vai usar, sucessivamente ou de modo complexo, com um único objectivo também, o de exprimir o seu próprio pensamento. Escusado seria dizer que quando digo «pensamento» estou a considerar também as impressões, as sensações, as emoções, os sonhos, que tudo isto são «visões» de um mundo exterior e de um mundo interior sem as quais o que chamamos «pensamento» se tornaria, pelo menos assim o creio, inoperante. O «narrador omnisciente», o autêntico, comporta-se, em minha opinião, como um deus que não se contentasse com saber tudo quanto se passou e vai passando: ele conhece, desde o primeiro facto, desde a primeira sensação, desde a primeira ideia, tudo o que a ideia, o facto ou a sensação irão ter como consequências próximas e distantes, espaciais ou temporais. (Idem, ibidem).
Não há tempo determinado para encontrar o lugar desejado, assim como nós precisamos muitas vezes, sem o respeito à determinação de um tempo em específico, sair de nós mesmos para encontrar o tão almejado.
O lançar-se no mar para navegar é o avançar para um objeto de desejo e realização, às vezes próximo, contudo, não enxergado, não percebido pela nossa própria incapacidade pessoal de objetividade e percepção do desconhecido. O texto traduz-se num paradoxo estranho.
Nós, em alguns momentos de nossas vidas, queremos estar longe de nós mesmos para, então, enxergarmos melhor nossa natureza.
O estatuto da onisciência faz com que a “busca” por uma ilha desconhecida seja um lugar poético de tantas possíveis interpretações, tanto em nível de saber com em nível de poder, como quer Foucault. A narrativa de Saramago está sempre em busca de uma conscientização do leitor. Como intelectual engajado nos problemas e tensões políticas de Portugal, ele conduz a problemática de uma historicidade local, em seus movimentos e contingências, investigando e recriando situações que questionam as ansiedades e esperanças humanas.
No entanto, como representar isso? Como já citado, não importa o status quo do sujeito, sua procedência, sua identidade. A postura do homem demasiadamente lúcido de se plantar na porta do rei é uma forma de dizer “não” à infelicidade determinada e de dizer “sim” à transcendência do sujeito transformado continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas culturais que nos rodeiam.