Memórias das Ruínas de Creta (1997), de Bernadette Lyra, é simultaneamente imaginário poético, distensão mística e extensão da (des)memória moderna. Em um cenário à primeira vista muito conhecido, A Ilha de Creta, a autora nos propõe um jogo bem contemporâneo e mítico: figuras lendárias como Dédalo, Minotauro, Ícaro, Ariadne são situados de forma labiríntica na Ilha de Creta.
O tema do labirinto (no romance diluído em três labirintos) tem seu avatar na figura do Minotauro (que também se dilui em três Minotauros) é o elemento que sou tentado a chamar de mediador e fundador da trama: em um ambiente cultural povoado de figuras míticas as mais diversas (dédalos, minotauros, Ícaros, navegadores, índios, piratas, feiticeiras, padres e donzelas), o Minotauro funciona como mediador entre o homem e a cultura que o cerca geopoliticamente, alegorizada entre os espaços habitados por homens e a cultura que o cerca e o envolve, cultura esta sempre alegorizada por ruínas geoculturais, sobre as quais Bernadette Lyra constrói seu jogo de memórias, nas estruturas de uma narrativa revisitada, relacionando seu texto ao imaginário coletivo e/ou individual, resolvidos na recepção.
Por sua vez, a artista plástica Nelma Guimarães delimita e permeia, com rigor, os componentes protogonistas das ruínas, diversas histórias, sempre tentando enfatizar, com gráficos, desenhos, decalques, etc. os (des)caminhos percorridos pelos três sonâmbulos Minotauros e de outras personagens dinâmicas que acabam sendo situados na Ilha de Vitória, com seus mangues, sua baía, suas praias, seus mitos e seus becos-labirintos.
As várias histórias nos são apresentadas na seguinte ordem (de oeste para leste, sudeste, sul e sudoeste, no sentido horário): a ilha, a fonte, a chegada, o primeiro Dédalo, o abrigo, o voo, o primeiro Minotauro, o desenho, o primeiro labirinto, o pátio, o segundo labirinto, o primeiro Ícaro, o ajuntamento, o estrangeiro, a ausência, o hóspede, o segundo Minotauro, a lição de Ariadne, o terceiro labirinto, o terceiro Minotauro, o abandono, a caçada, a dança, o nome, o segundo Ícaro, o sonho, a viagem e o sacrifício, sempre sob o olhar de Ariadne, um olhar de estranhamento e desconforto às ruínas de Creta.
A romancista resguarda segredos do passado, ao nos apresentar um estratégico quadro cultural onde a reminiscência é usada como uma técnica ascética e mística. Memória das Ruínas de Creta é um antídoto ao perigo do esquecimento.
É um antídoto para os que na Ilha se autodevoram, pois na narrativa multifacetada e nas sucessivas histórias, os elementos autofágicos são diversos e estão representados pelas inúmeras máscaras míticas que particularizam certas personagens que se tornam antitipos, entre eles o estrangeiro (ou o forasteiro, o outro), que “não sabe pisar” no lugar certo, pois a paisagem lhe é “um inferno de linhas retilíneas e duras, com letras faiscantes sobre o luxalon, contra o céu que refletia de maneira sinistra o teto de automóveis reunidos em fileiras como moscas coloridas e estranhas ao pé do relógio que se erguia como um falo imenso no centro” (p. 35).
Neste romance, Bernadette Lyra usa e abusa da ideia de crise da história, como componente dos desenvolvimentos da, assim chamada, razão moderna, para enfatizar a parte mais abstrata e sensível do homem moderno, do homem de hoje e sua (des)memória. A exploração do tempo humano – sempre o último destino incerto do indivíduo que percorre o labirinto, que, subdividido, o conduz aos espaços da coletividade – fonte, abrigo, caçada, pátio, ajuntamento, dança – ou não, é um recurso muito peculiar na narrativa contemporânea e muito caro à autora.
A identidade coletiva é tratada, neste romance, em estado de reconfiguração que leva os ambientes sempre a uma paisagem desconhecida, sem ser! São desterritorializadas e sob esta perspectiva da desterritorialização:
“Certamente que muitos afirmam ser uma ilha apenas um rochedo à beira do oceano, nós sabemos que é um lugar que se dissipa, refaz e desfaz, com uma ânsia de metamorfose, um local de passagem dos deuses, coisa que dificulta a identificação de suas múltiplas lajes mortuárias, de suas rampas fúnebres, de suas estrelas, de suas inscrições” (p. 51).
A cartografia da ilha é, então, uma geografia de ruínas, onde a narrativa atrai para si mesma armadilhas em pontos demarcados por uma visão apocalíptica cujos figurantes podem ser tomados como fantasmas enclausurados, narcisistas, comerciais, hedonistas e modistas. Memórias das Ruínas de Creta é uma obra ímpar, eleita como uma literatura que por si só elege sua diferença e diversidade individual, social e cultural, mesmo fazendo parte de uma unidade mais ampla, mais coletiva.