Os primeiros aspectos definidores de Macabéa dizem respeito à modesta origem social (“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa.” (Id., ibid., p. 28) Órfã, criada por uma tia repressora, Macabéa é feia, virgem, gosta de coca-cola, passa um pouco de fome e trabalha como datilógrafa no Rio de Janeiro.
No entanto, o aspecto predominante de sua medíocre personalidade é seu despreparo para a vida inteligente. É tão tola que sorri para as pessoas na rua, mas ninguém lhe responde ao sorriso porque sequer a olham. A própria cara expressa tanta pobreza mental que parece pedir para ser esbofeteada. Em síntese, trata-se de um ser ínfimo, de uma “alma rala”.
A inconsciência de Macabéa não resulta apenas da ignorância do mundo. Ela se desconhece: “quando acordava não sabia mais que era”. (Id., ibid., p. 51) às vezes, diante do espelho, não se enxergava, como se sua cara tivesse sumido. A todo instante, Rodrigo S. M. registra a alienação de Macabéa, sua incapacidade de percepção. Por isso, a jovem nordestina vive na dimensão do não-ser (grifo meu).
Para tal, liricamente, Rodrigo S. M. dá-lhe uma feição clownesca, com algumas delimitações tragicamente lírico-grotescas: a compreensão de Macabéa a respeito da existência, seja sua própria, seja a da humanidade em geral é melodramática, pois a personagem Macabéa é criada por Rodrigo S. M., com o narrador intensificando as não-virtudes e vícios da personagem, tornando-a vilã ou heroína, enfatizando-lhe artificialmente determinadas características, pois o objetivo maior desta estética é impressionar e comover cada leitor, através da “verossimilhança”, no campo da bestialidade, pois ela age como uma mentecapta: pede desculpas ao patrão por tê-lo aborrecido quando este se dispõe a demiti-la; agradece ao médico que lhe diagnostica a tuberculose e quando ironicamente ele lhe receita espaguete, pois ela ignora o que seja isso; e no momento quando o namorado, Olímpico, lhe dá o fora, põe-se sem mais nem menos a rir.
Nada a desespera, nem saber que não faz falta a ninguém ou que é muito feia e desinteressante (‘ser feia dói?”, pergunta-lhe Glória). Tampouco o futuro a preocupa, ela não tem futuro como não tem passado nem presente, porque na verdade ela não existe, ela é um vegetal: ‘ ela era subterrânea e nunca tinha floração. Minto: ela era capim”. (Id., ibid., p. 51) Sua pobre cultura, pouca, originária das informações inúteis da Rádio Relógio, é risível. Um melodrama ou uma tragicomédia?
Muito se falou em epifania na obra de Clarice Lispector, porém as pouquíssimas revelações (epifanias) que Macabéa experimenta não lhe são suficientes para a formação de uma identidade. Certa ocasião, chorava ao ouvir “Uma furtiva lacrima”, na interpretação de Caruso ( “Adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com certo luxo de alma”. (1995, p. 68). Outro dia, em que não fora trabalhar e ficara sozinha no quarto, tinha dançado “num ato de absoluta coragem” (Id., ibid., p. 56). Porém, a descoberta efetiva do próprio ser ocorreria apenas depois do atropelamento, o que me faz crer que a hora da estrela é a hora da morte, seja de quem for!
Ao seguir a sugestão de Glória, Macabéa procura uma cartomante e se deslumbra: “lá tudo era de luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta” (1995, 90). constata – por meio das palavras de madame Carlota – que sua vida tinha sido horrível até então. As perspectivas anunciadas pela cartomante transformam Macabéa. Pela primeira vez ela sente a sua existência, está “grávida de futuro” (Id., ibid., p.98)
Ao ser atropelada, Macabéa descobre sua essência: “hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci” (Id., ibid., p. 99). Há aí uma situação paradoxal: Por que a hora da estrela é a hora da morte? Porque ela só nasce, ou seja, só chega a ter consciência de si mesma, na hora da sua morte. Por isso” p. 103). Por ter definido sua existência, pois na sua morte, ela passaria ter vida, reinicia o drama da existência outra: Macabéa pronuncia uma frase que nenhum dos transeuntes entende: “quanto ao futuro […].
Nesta exata hora Macabéa sente um fundo enjoo de estômago quase vomita, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas”. (id., ibid., p. 103) O vômito é a sinédoque maior da inumanidade de Macabéa.
O que teria para vomitar? Extremamente irônica, esta situação de exumação do nada, cria o universo melodramático, “ser ou não ser”, carregado de humor cáustico sobre o qual falei anteriormente: à Macabéa é possível somente exumar a falta de código, de educação e de cultura, do nada. Vomitar estrela de mil pontas é vomitar sua finitude na hora da morte.
Por isso, terminar a narração para Rodrigo S. M. representa não apenas o fim de uma história trágica para ele, melodramática e nonsense para o leitor comum, mas também a percepção de sua própria finitude pessoal. Perplexo, ele visualiza na morte de Macabéa a sua própria morte, a hora da estrela: “meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!”
A conclusão implícita do narrador é a de que ele, Macabéa e, eu diria, a própria Clarice Lispector, apesar das diferenças sociais, intelectuais de visão de mundo que os separavam, tinham uma identidade comum, irmanavam-se e convergiam para um mesmo destino, simbolizado pela alegoria “a hora da estrela”, ou seja, a morte, “pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um, e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (id., ibid., p. 44).
Numa série de treze títulos paralelos que Clarice – no corpo do próprio texto – estabelece para A hora da estrela figura um último que é uma pungente referência a Macabéa, a Rodrigo S. M. e a própria Clarice: “saída discreta pela porta dos fundos” (id., ibid., p. 36).
Assim, estamos diante de Clarice Lispector que se debate com um sem números de imagens poéticas e mescla estilos que vão do introspectivo ao humor, à ironia fina, ao melodrama, à tragicomédia, ao clown de Shakespeare, dando-lhe característica inconfundível, e que servem, no plano da criação, para nos trazer a extensa significância, dentro da heterogeneidade dos registros que emergem das histórias por ela narradas.