Depois de um mês de merecidas férias, volto a escrever. Este espaço é sempre o ESPAÇO de luta, de combate, parafraseando Vilma Arêas, em seu livro um beijo por mês (Lunaparque, 2018): a autora apresenta dois sentidos para a palavra recorte, sendo o primeiro assim posto: “1. ‘ato em que toureiro se encontra no mesmo ponto com o touro, no momento em que este baixa a cabeça para marrar” (Lello Universal). Estão, pois, “no terreno da verdade”, ou seja, na arena, o lugar de combate”.
Estenderei meu entendimento de arena neste artigo. E sobre o livro de Vilma, que estou lendo prazerosamente, escreverei em outra oportunidade.
Meu pensamento, devido aos últimos acontecimentos políticos no nosso país, mandos e desmandos, perda da razão democrática, desvios, traição, balbúrdia jurídica, cortes de verbas essenciais, roubo e falcatruas, lava jato e vaza jato, está voltado para minha alma, pois sinto-me extremamente irritado e incomodado por ter vivido nos tempos da ditadura militar, de volta aos anos 70, tenebroso e nebuloso/criminoso e violento.
Lembrei-me de uma obra de 1976, Galvez, o imperador do Acre, de Márcio Souza. E eis o que narra o romance, em história que se passa no final do século XIX, na dourada Amazônia da época.
Galvez, o Imperador do Acre, de Márcio Souza, escrito em 1976, em suma, narra a vida e a prodigiosa aventura de Dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria nas fabulosas (já muito corruptas e riquíssimas devido à bem sucedida extração e consequente lucro da borracha) capitais amazônicas, e a burlesca conquista do território acreano contada com perfeito e justo equilíbrio de raciocínio, para a delícia dos leitores.

Ambientado no fim do século XIX, repetindo, a narrativa nos mostra como o rápido avanço da revolução industrial multiplicou a demanda da borracha – motivo e fundamento do delirante boom amazônico, cujo monumento mais vistoso é Manaus, a capital da selva, a meca dos caçadores de fortuna, politiqueiros, rameiras de luxo e de outros gêneros, em suma, de visionários e aventureiros.
Márcio Souza mistura com maestria dados fictícios e históricos, enredando o leitor no mundo delicioso desse andaluz de Cádiz chamado Galvez. Um audacioso amante e, segundo suas próprias palavras, “espanhol da geração melancólica”.
Um homem invulnerável aos golpes do destino – sejam estes emboscadas, dilúvios, doenças, canibais e flechas, amores eclesiásticos e amizades equívocas – e que funda no norte do Reino do Brasil, o efêmero império do Acre. Mais uma vez, e já vem de longe as narrativas (ou metanarrativas para alguns) nos traz à luz reflexões teóricas bem ricas. Vejamos:
Na narrativa contemporânea, e há muitos estudos sobre o tema, a ruptura das fronteiras entre ficção e história é uma forma estética muito comum. Em Galvez, imperador do Acre, o recurso ao factual não é apenas o pano de fundo para ambientar a ficção, mas parte integrante e essencial a invadir a trama e também a deixar-se embeber por ela.

O leitor mais atento certamente desejará confirmar cada detalhe, assim como o fez o leitor de O pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, que questionou o rigor histórico com que foi construído o palco do romance.
O escritor italiano narra esse episódio em seis passeios pelo bosque da ficção para demonstrar como algumas vezes é difícil a adesão ao necessário pacto ficcional, aquele em que o leitor, mesmo sabendo que o que está sendo narrado é uma história imaginária, nem por isso deve pensar que o autor está contando mentiras.
Menciona-se esse fato porque dificilmente o leitor de Galvez imperador do Acre, de Márcio Souza, deixará de ser tomado pelo mesmo zelo investigativo que assaltou o leitor de Eco. Com a diferença que o amazonense, ao contrário do italiano, deixa claro, logo nas primeiras linhas, qual intenção rege a obra.
Este é um livro de ficção onde figuras da história se entrelaçam numa síntese dos delírios da monocultura. Os eventos do passado estão arranjados numa nova atribuição de motivos e o autor procurou mostrar uma determinada fração do viver regional (SOUZA, 1985, p. 9).
Como se vê, o narrador nada escamoteia. Porém, ao mesmo tempo em que declara tratar-se de ficção, afirma que deu “novo arranjo aos eventos do passado” e, mais que isso, que “procurou mostrar uma determinada fração do viver regional”. Que, reafirmo, torna-se pelo mérito da narrativa, um romance que celebra tenebrosamente os tempos atuais.
A par disso, sabe-se, e a narrativa não omite que Luiz Galvez Rodrigues de Aria teve existência real e que se imiscuiu, de fato, na questão do Acre. A existência histórica da personagem é documentada, inclusive com indicação bibliográfica, em “A Dialética da Natureza”, último capítulo do livro. O herói burlesco e vaudeviliano existiu realmente e pelo norte do Brasil exercitou sua fidalguia. Comandou uma das revoluções acreanas, e quem duvidar que procure um livro sério que confirme nossa afirmação.
Os lances picarescos de Luiz Galvez formam um todo com o vaudeville político do ciclo da borracha. No livro do escritor Veiga Simões, “DAQUEM & DALEM MAR”, editado em Manaus, no ano de 1917, pela livraria Palais Royal, há a seguinte descrição do herói:
“Por algum tempo esse aventureiro audacioso manteve o gesto que mais tarde repetiria Jacques Lebaudy, Imperador do Sahara; e D. Galvez I legislou, batalhou, deu armas e bandeira ao novo Estado – enquanto teve recursos… Acabados eles, esse Império esvaiu-se, sumiu-se pelo boqueirão das coisas pícaras que deixam a memória envolvida em troça.” (SOUZA, 1985, p. 195-196).
Da primeira à última linha, a narrativa de Souza é porosa, permeada de referências que se entrecruzam e dialogam entre si, em retomadas históricas e literárias vazadas sob o signo do humor e da ironia. Galvez imperador do Acre situa-se num limiar nebuloso entre história e ficção. Declara-se ficção, mas quase tudo nele tem existência histórica, inclusive o protagonista e boa parte das personagens, além dos fatos narrados, descontados, evidentemente, os excessos, contra os quais o leitor é advertido a precaver-se, já que o memorialista é “um consumado mentiroso” (SOUZA, 1985, p. 14).
O formalismo, no âmbito da teoria da literatura, representou um rompimento com a perspectiva histórica de abordagem do fato literário, que reinou inconteste durante todo o século XIX.
E continuam na realidade de 2019 a assombrar o Brasil, via intransigência, autoritarismo e mentiras, como signo da intolerância à democracia, ao respeito e cumprimento dos direitos humanos e à natureza/ambiente para não dizer que trago à baila nosso trágico projeto presidencial de destruição da Amazônia, vazado pelo The Intercept, na figura do jornalista Glenn Greenwald e da sua competência em fazer história como Imperador do Jornalismo no Brasil atual.
The Intercept vaza planos de Bolsonaro para destruir a Amazônia. O romance esbarra no vaudeville, como já disse e trata-se de relatos autobiográficos com narradores autodiegéticos, usando a primeira pessoa gramatical. No Lazarillo, por exemplo, o narrador, no prólogo, deixa claro o objetivo de contar em pormenores sua vida a um narratário (“Vuestra Merced”).
A narração é um texto proveniente das diversas experiências pessoais (episódios) do pícaro com diferentes patrões. É uma narrativa cujos diferentes acontecimentos estão concebidos e subordinados a um projeto final: explicar o estado de desonra em que vive a personagem ao finalizar o relato.
É uma história retrospectiva em que se dá notícia da vida da personagem-narradora desde a infância até o momento em que se efetua a narração. Isto quer dizer que o pícaro conta sua genealogia nada ideal, seu trabalho para diferentes patrões (condição servil) e seu próprio estado atual de pícaro, que pode revestir uma situação bastante difícil, como, por exemplo, estar escrevendo suas memórias remando numa galera. (…) Tal narração retrospectiva se baseia em analepses, mas (…) dentro delas a história progride de acordo com uma cronologia linear, organizando-se em episódios justapostos.
Na narrativa, ambientada na virada do século XIX para o XX, a forte inspiração machadiana e algo folhetinesca é inegável. Já o recurso aos gêneros medievais, historicamente mais recuados, é operado pela via não só do romance picaresco como também pela do romance de cavalaria.
FIM. FIM DA PICADA. FIM TRISTE! Triste fim de Galvez, do Acre, da Amazônia, de nós. PRESENTE!