O processo estilístico de Clarice Lispector está, muitas vezes, atrelado ao próprio processo de evolução formal de sua literatura. Já no primeiro romance, Perto do coração selvagem (1944), a escritora tateia o mundo, assim como sua personagem, Joana, e procura interpretá-la ou compreendê-la. Não obstante serem, nesta obra, as imagens simples quase que diretas: “piedade é a minha forma de amor”. (LISPECTOR, 1944, 56).
Clarice afirmava que diante da folha de papel em branco não sabia escrever; ou melhor, não sabia como transportar para o papel suas ideias. Somente mais tarde, a autora compreendeu que não se separa ideia da forma e que o ato criador é uma espécie de improviso. Contou ainda que as anotações que fazia circunstancialmente já saíam definitivas para um pretendido livro.
Ainda em Perto do coração selvagem (1944), quando a personagem se define diante do casamento, pode-se surpreender a procura da autora por uma definição, o que talvez a tenha feito racionalizar, em excesso, a pesquisa em A Paixão Segundo GH (1968).
Vilma Arêas, em Clarice Lispector com a ponta dos dedos (2005), põe em cena todas as articulações que dão unidade à obra clariceana. Com um olhar bastante contemporâneo, Vilma nos diz que, para ela, a obra de Clarice não cessa de surpreender.
Não só pelo amor ao risco e à experimentação, mas também por sua estranha fortuna pública – à autora difícil de uma obra feita para ser lida por poucos, seguiu-se a celebridade aos olhos da crítica feminista, antes da admissão à lista de leituras obrigatórias das escolas brasileiras.
Em todas essas versões de Clarice mora o risco do lugar-comum. Um deles diz respeito à distinção entre os livros escritos “com as entranhas” e os livros menores do fim da vida, que só não causam constrangimento maior por terem sido relegados pela própria autora, com exceção de A hora da estrela (1979). Porém à obra clariceana não cabem reduções. É contra essa distinção fácil demais que Vilma Arêas tenta demonstrar a fundamental unidade da obra de Lispector.
O método não podia ser mais engenhoso – partindo das obras tidas, até então, como secundárias, a crítica revela como são perpassadas pela mesma angústia pessoal e estética que conferia tensão dramática aos livros já consagrados. Com uma novidade nada desprezível – a Clarice desse período aventura-se mais a fundo numa dicção irônica, de paródia e melodrama, que lhe renderia A hora da estrela (1979), um retrato doloroso e fraturado da vida social brasileira.
A primeira vez que tive contato com Vilma Arêas em sala de aula, nos idos dos anos 80, ela me apresentou A Via Crucis do Corpo (1974), livro de contos que me extasiou a priori e continua me desafiando, e também aos meus alunos, quando lhes pedia que lessem os contos para discutirmos em sala de aula. Isso porque a fratura social, a ironia, a paródia e o melodrama, até mesmo o kitsch estão já, desde a apresentação feita pela própria autora, presentes em toda a obra.
De “Missa Algrave” ao conto que dá título ao livro – “Via Crucis”, passando por “Ele me bebeu” e “O Corpo”, temos um fantástico painel da busca da escritora em desvelar o que há nas profundezas da alma humana, em revelar o bandido que cada um carrega dentro de si, sem medo de assumi-lo a qualquer momento que lhe for conveniente. Este é o grande mote de Clarice. Somos muito mais bandidos para nós mesmos. A cada busca de sentido, perdemo-nos na escuridão da zona desconhecida de cada um.