Em entrevista concedida à TV Cultura, Programa Panorama, em 1º. De fevereiro de 1977, Clarice falou de seu estarrecimento diante da morte de Mineirinho, o que lhe deu um impulso tenso para escrever o conto/crônica “Mineirinho”, do qual transcrevo este fragmento:
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização. Um ajustiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno. (Em http://www.raisites.com/letraviva/prosa/51-mineirinho-clarice-lispector-html; acessado em 02 de jan. 2011.)
Não à toa, toda essa legião “abstrata” (estrangeira, parafraseando a própria Clarice) escondida dentro de nós encontra forte voz na figura do Mineirinho, pois ele inumana a fratura social de que trata Vilma Arêas. Não são vozes. Não são mera representações ou pessoas, personas nem personagens tão somente. São algo bem fronteiriço entre ficção e realidade, já que Clarice Lispector se permitia entrar – ela mesma – na ficção para conectar os elementos da inspiração. É neste instante que se dá sua melhor literatura, na apreensão de tudo que está saturado, mas ainda pode ser dito de forma poética e política.
Fonte: Youtube
Adriana Lunardi, escritora e pesquisadora de Clarice (quem escreveu, inclusive, um conto de título Clarice), nos diz que em toda a obra clariciana há um encorajamento em direção às pequenas e grandes verdades, ao ato de vasculhar o material menos brilhante de que somos feitos.
Por meio da nordestina errante, subnutrida e mentalmente rebaixada de A hora da estrela, a condição humana é exposta em uma secura primitiva, tão desprovida que parece almejar a volta ao pré-civilizado, ao menos que humano, à simplicidade vegetal. Corpo ou mente, tudo falha na personagem: que história dar a ser sem texturas? E, no entanto, o livro termina e começa com um sim – única resposta necessária para tudo ser possível.
Este “tom” de inumanidade que Clarice imprime às suas criaturas – Miss Algrave, Macabéa, Joana, Laura, Ana (Como são inumanizadas?) é um artifício largamente utilizado por James Joyce e Proust, o fluxo de consciência, que marca indelevelmente a literatura de Clarice Lispector. Tal aspecto consiste em explorar a temática psicológica de modo tão profundo que o assunto nunca é completamente explorado, ou seja, as diversas possibilidades de análise psicológica e a complexidade da temática contribuem para a inesgotabilidade do assunto.
Em Clarice, o fluxo de consciência indefine as fronteiras entre a voz do narrador e a das personagens, de modo que reminiscências, desejos, falas e ações se misturam na narrativa num jorro desarticulado, descontínuo que tem essa desordem representada por uma estrutura sintática caótica.
Assim, o pensamento simplesmente flui livremente, pois as personagens não pensam de maneira ordenada, mas sim de maneira conturbada e desconexa. Portanto, é a espontaneidade da representação do pensamento das personagens que caracteriza o caos de tal marca literária.
O monólogo interior se torna então outro artifício usado por Clarice, contribuindo para a construção da atmosfera intropestctiva. Afinal, o que caracteriza o fluxo de consciência em sua essência? O monólogo interior, técnica que consiste em reproduzir o pensamento da personagem que se dirige a si mesma, ou seja, é como se o “eu” falasse pra si próprio, trazendo à tona e aos leitores aqueles terrores da legião “estrangeira”.
Registra-se, portanto, o mergulho no mundo interior da personagem que revela suas próprias emoções, devaneios, impressões, dúvidas, enfim, uma verdade interior estranha, por vezes até descabida, no contexto que lhe é posto como opção de cenário.
Descortinando, assim, as verdades interiores de suas criaturas, Clarice não atenua o travo da desigualdade e das contradições sociais (Candido, 1976). Ao contrário, em todos os seus textos, Lispector invoca o fator social para fortalecer a estrutura da obra e o teor da ideias. Funde, assim, processos estilísticos com contendos pendulares da nossa própria cultura.
(Continua no próximo artigo)