A literatura de Clarice permite-nos analisar fatos aparentemente obscuros, conservando em torno do primitivo e do “tosco” um halo de mistério, contribuindo de forma literal para que se investigue aspectos alógicos do comportamento e da mente humanos.
Por isso, não menos, a obra de Clarice é uma representação de humanidade intemporal e universal: nela se coadunam aspectos sociais e humanos da criação. A própria escritora afirma:
Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano – já me aconteceu antes. Pois sei que – em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.
(Em <http:/www.claricelispector.com.br/autobiografia.aspx>, acesso em 20 de jan. 2011)
Não seria esse vazio o mote principal de A hora da estrela? A estrela dobrada de Clarice (AZEVEDO FILHO, 1995), cuja história tem treze títulos incluindo Clarice Lispector? A função digressiva do humor cáustico neste novela está sempre presente onde há “inferno humano”, pois ele é tenso, duro e de dicção própria ao melodrama e ao tragicômico.
Escrito enquanto um câncer a corroía, A hora da estrela é a tentativa da autora de fugir da sufocante introspecção de obras anteriores (“não aguento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé”- LISPECTOR, 1995, p. 21), criando um texto que tivesse abertura para o mundo exterior.
Não se pode desconsiderar as circunstâncias históricas em que o livro foi produzido: o governo Geisel pondo em prática uma distensão lenta e gradual, o recuo dos aparelhos repressivos, as inquietações da sociedade civil, as contestações políticas menos tímidas e a perspectiva do fim da ditadura militar podem ter influenciado a escritora a produzir algo mais social. Ou seja, um texto solidário em relação aos milhares de nordestinos que migravam para o sudeste em busca de melhores condições de vida corresponderia, com certeza, ao clima da época.
A novidade da criação que é a criação de um narrador masculino (único na obra de Clarice) para relatar o drama de Macabéa. Por ser homem, Rodrigo S. M. poderia ter uma visão menos intimista e sentimental e, portanto, mais capaz de entender a extensão da realidade concreta “porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (LISPECTOR, 1995, p. 28)
A questão do narrador é essencial no texto. Na Dedicatória do autor, que abre o livro, há uma advertência: “na verdade Clarice Lispector”. Estabelece-se, assim, uma estrita vinculação entre Clarice e o narrador da obra. Ambos se confundem. São um só e, ao mesmo tempo, são diferentes. Rodrigo S. M. representa uma outra forma de ser e de escrever de Clarice, um desdobramento do próprio eu da escritora, uma espécie de heterônimo.
Este narrador expressaria de maneira mais confiável a realidade objetiva (o drama de Macabéa), como também poderia apresentar algumas respostas aos impasses existenciais e literários que atormentavam a autora de Laços de família (1970).
Desta forma, A hora da estrela deixa de ser exclusivamente uma novela especificamente social e torna-se também um “drama da linguagem”, expressão de Benedito Nunes (1973), e um questionamento metafísico sobre o significado último da existência.
(continua na próxima)