Retomando os últimos artigos e as ideias discutidas no contexto da obra, quero, neste penúltimo artigo, lançar algumas hipóteses e defendê-las, no âmbito do narrador Rodrigo S.M.
As primeiras vinte páginas do texto são de discussão dos problemas que Rodrigo S.M. enfrenta para escrever. Um deles, essencialmente, diz respeito à questão do estilo a ser empregado. O narrador opta pela simplicidade:
É claro que, como todo o escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar […] Mas não vou enfeitar a palavra […] Tenho então que falar simples […] Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. (Lispector, 1995, p. 25)
Outra preocupação de Rodrigo S. M. é o da estrutura narrativa. Confundindo-se com Clarice, ele renuncia ao modo psicológico/adjetivo da escrita anterior e anuncia sua adesão a uma forma tradicional de narrar: “assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e `gran finale´” (Lispector, 1995, p. 29)
Porém, pode o narrador basear-se no modelo convencional de narrativa, se sua protagonista é uma coitada, sem qualquer possibilidade de ação sobre o mundo? Inúmeras vezes Rodrigo S. M. problematiza a mediocridade da história que vai contar.
O melodrama de Macabéa é assim nos apresentado: “que não se esperem, então, estrelas no que se segue: nada cintilará, trata-se de matéria opaca e por sua própria natureza desprezível por todos” (Idem, p. 30); “limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.” (Idem, ibidem).
Um dos aspectos significativos da obra é a culpa do narrador em relação à Macabéa. Sua consciência que, de alguma maneira, ele é corresponsável pela pobreza econômica e existencial da jovem nordestina o atormenta todo o tempo. Escrever, para Rodrigo S. M., é algo mais do que contar uma história ou fixar um um drama social.
Escrever é questionar-se o tempo todo: “este livro é uma pergunta” (Idem, p. 31). É, ao mesmo tempo, uma busca de autoconhecimento (“Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido.”) (Idem, p. 29); é uma tentativa de encontrar significado para a existência fora da própria interioridade (“Bem sei que é assustador sair de si mesmo”) (Idem, p. 46). E é, também, uma suspensão parcial da morte: escrevo porque sou um despreparado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.” (Idem, p. 35/36) Mesmo assim, o narrador experimenta um fortíssimo sentimento de fracasso da linguagem e a certeza de que a literatura não resolve os problemas humanos.
No entanto, um dos aspectos mais complexos da obra é a relação de Rodrigo S. M. com Macabéa. Se por um lado ele a vê como alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por atribuir-lhe uma patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um vínculo mais profundo, que é o da comum condição humana.
Esta identificação, que ultrapassa as questões de classe, de gênero e de construção de mundo, é um elemento de grande significação na obra, pois Rodrigo e Macabéa se confundem: “mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada”. (Idem, p. 48)
Na entrevista que deu à TV Cultura, em fevereiro de 1977, Clarice fala de estar tocada pelo drama desta nordestina, logo após falar de ter morado no Nordeste e ter assistido à miséria das gentes da região. E isso inclui, certamente, a miséria maior: a falta de educação, cultura, saneamento básico, educação, etc.
*Continua: Artigo final na próxima quarta-feira